Foto: Grupo dos estudantes indígenas da Intercultural Indígena da UFBA, com Mestre Maia e Mestre Japira – Marina Fernandez | Instagram: @marispock
“O povo da intercultural chegou aqui para estudar na Federal da Bahia”
Apresentação: Olá, parentes e aliados possíveis que acompanham a Rádio Yandê. Nesta conversa, convidamos o parente Atã Xorã Tupinambá de Olivença para compartilhar sua experiência no curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFBA – Universidade Federal da Bahia.
A entrevista foi gravada durante o primeiro Tempo Universitário-na-Comunidade, realizado entre os dias 7 e 17 de janeiro de 2025, na Escola Estadual Kiriri José Zacarias, localizada na Aldeia Kiriri de Mirandela, em Banzaê, Bahia. O evento reuniu a maioria dos estudantes da primeira turma do curso, composta por discentes das etnias: Kiriri, Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Tupinambá e Tumbalalá. Também participaram estudantes indígenas e não-indígenas dos cursos de graduação e pós-graduação da UFBA, que atuaram como voluntários em componentes ministrados pelos professores e professoras deste primeiro semestre. O evento é um rito, trata-se do momento final do semestre, sempre irá ocorrer em um território indígena. Nele há o fechamento dos componentes, entregas e apresentação de trabalho. Além de visita ao território onde ocorre o momento.
Um dos destaques foi a presença das professoras indígenas Mestra Mayá Muniz Tupinambá Hãhãhãe e Mestra Japira, além do professor indígena Dr. Rafael Xucuru-Kariri. Tivemos ainda a oportunidade de ouvir o Cacique Lázaro Kiriri durante a visita ao Centro Cultural Kiriri e de acompanhar a aula da Mestra Nininha Kiriri, guardiã dos saberes ceramistas de Mirandela. Suas aulas foram ministradas para cerca de 62 cursistas, entre docentes e estudantes da UFBA, evidenciando o interesse crescente pelos saberes, artes e culturas indígenas.
Acompanhem agora esse diálogo com Atã Xorã Tupinambá e mergulhem nessa troca de conhecimentos!
CONVERSA COM O PARENTE ATÃ XORÃ TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Olá parente, a intenção desta conversa é ouvir o que você tem a falar sobre sua experiência no curso de Licenciatura Intercultural da UFBA. Gostaria que pensássemos sobre a importância, os impactos e desafios do curso para você e para todo seu território.
Mas, inicialmente, gostaria que você se apresentasse: qual seu nome, seu território, o que faz? Quais são as suas lutas?
Sou Atã Xorã Tupinambá de Olivença, moro no território Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, a cidade de referência é Ilhéus (BA). A cidade de Ilhéus fica entre os munícipios de Una e Buerarema.
Nosso território abrange essas três cidades e um território de reclamação. Nós estamos na luta pelo território. Fomos reconhecidos pelo estado em 2002 e de lá pra cá estamos na luta do território.
Mas a nossa luta vem há muito tempo. A luta pelo povo, pelo território, pela educação diferenciada, pela saúde e a luta principal: a luta pela Terra!
Sou educador, trabalho na Escola Indígena e a gente vem nesse processo de formação para poder fortalecer essa luta mesmo. Como falei, a luta é bem constante, é a luta dos meus pais é a luta dos meus avós que continua nessa luta, nessa caminhada e todo aquele passo que aconteceu da história, um relato das história
E um ponto principal que marca nosso território, é a revolta do Caboco Marcelino, que é um grande guerreiro para o povo Tupinambá. Nós acreditamos que quando uma pessoa morre, ela se encanta. Então a gente sempre fala que encantou. Acabou que o Marcelino encantou, mas a luta continua, porque nós acreditamos que quando uma pessoa encanta, ela fica sempre no território, continua junto com a gente, não fisicamente, mas espiritualmente, ele fica junto com a gente. Então nossos pais, nossos avós, que já encantaram, continuam passo a passo nessa luta. Então o povo Tupinambá é um povo de resistência, veio nessa luta há muito tempo resistindo. E no território Tupinambá de Olivença, aconteceu um aldeamento jesuíta. Que foi aquele processo da igreja católica, todo aquele processo de história que a gente já viu contado nos livros didáticos. E ali houve grande massacre, principalmente no idioma, no idioma e na cultura do povo.
Então a gente foi obrigado a esquecer nosso idioma e foi obrigado a não fazer alguns rituais: de caça, do nascimento de criança, dos velórios, quando algum Ancião encantava. E ritual de passagem da idade do jovem, então nós fomos obrigados a esquecer. E grande parte que eles focaram mesmo para gente perder um pouco, foi a parte do idioma. E esse processo a gente vê o povo Tupinambá continuar na luta. Primeiramente a gente foi chamada de Caboclo de Olivença e depois foi chamada de índio e a gente sempre na luta, mas a gente só continuou reivindicando a nossa posse de ser conhecido como Tupinambá. Então, quando a gente passa a ser reconhecido pelo estado, nossa luta é crescente, ganha força e a gente vem reivindicando. Então a gente consegue a construção dos Colégios Indígenas no território Tupinambá de Olivença. Antes a gente dava aula debaixo de algumas árvores. Algumas árvores que serviam como casas.
As aulas também aconteciam nas casas de farinha, nas casas dos parentes. E a gente reivindicando, cobrando do governo essa dívida, ele constrói 1 colégio no território Tupinambá de Olivença e hoje temos cinco colégios indígenas construídos dentro do território. E a luta pela educação continua. Então a gente vem no fórum de educação, é a gente vem com alguma formação de alguns professores dos saberes do magistério indígena, formação continuada e a licenciatura ela vem para somar nessa luta. Então, sabemos que o estado considera que o professor tem que ter formação e a grande maioria dos territórios do sul, extremo sul, a maioria dos professores não têm formação continuada e nem formação em nível superior. E essa licenciatura ela vem então nesse processo de nos ajudar. Lá no meu território temos 11 estudantes Tupinambá que fizeram a inscrição e conseguiram essa oportunidade de receber essa formação, e eu sou um deles. E assim a gente vem sempre de escola pública, é escola de não índio que a gente estuda.
E é um grande passo para nosso povo porque com essa formação a gente vai ter mais estabilidade, tanto no trabalho que a gente recebe esse diploma, conseguindo essa graduação, vamos estar capacitados. Assim, mais capacitado para a gente trabalhar com nossas crianças. E tem uma garantia também de ter nome, ser professor formado e tal. Então a gente vai ter estrutura para reivindicar mais direitos contra o estado que vem a licenciatura, depois vem a pós é isso aí vai subindo de nível. Mas essa primeira, então, nós somos a primeira licenciatura intercultural. É assim para o povo da Bahia e do Brasil e para gente tupinambá estamos reivindicando essa, essa busca, essa demanda e sempre cobrando do estado, dos órgãos competentes, que dê condição para a gente caminhar, porque não adianta só oferecer os cursos, as licenciaturas, mas que dê condição para o estudante sair das suas terras, saia da sua aldeia e estudar na Universidade, porque sempre acontece sempre fora do território. Então, como acontece em Salvador, acontece em outros lugares e a gente não tem condição de chegar lá ou se manter lá, porque tem uma luta do território. Nós somos liderança, nós estamos na luta pela Terra. Nós temos uma luta pela organização da aldeia então é uma luta constante. Então o estado precisa dar condições de as pessoas se manterem na universidade. Portanto, a parte diz respeito à parte cultural, então não é só condição de dar dinheiro para oferecer para poder ficar lá, mas que dê condição de respeitar nossos costumes, nossa tradição, nossos rituais, que tem momento nas aldeias, que tem uns rituais importante que as pessoas tenham que participar então a gente tem que estar presente, a gente tem que estar presente naquele momento.
Na caminhada mesmo do Tupinambá de Olivença, nós temos que estar presentes. É a memória de nossos ancestrais, nossos ancestrais que ali morreram, que encantou. Então é que esse discurso de formação dê condição, que no momento em que a gente estiver nesse processo de rituais na aldeia, que seja liberado para gente vir participar, então é uma luta ainda constante. Então, como a gente falou: a gente é a primeira turma, então a gente está seguindo o passo a passo para poder formar junto com o Estado. Essa licenciatura está sendo construída junto, porque sempre fala: “nada para nós, sem nós”. Então, se é para oferecer uma coisa, que a gente faça parte dessa comissão, a gente faz parte dessa organização também. E essa licenciatura. E como eu falei, ela vem fortalecer esse contexto. Contexto da história do povo, que reivindica, que lutou e que buscou para formação mesmo pessoal, formação acadêmica e que a gente possa dar condição melhor para nossos alunos e nossos parentes no território.
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Muito bom, parente! Continuando nossa conversa, gostaria que você falasse sobre a importância de termos professores/as indígenas atuando nas Escolas Indígenas?
Atã Xorã Tupinambá de Olivença: Antes nos territórios Tupinambá e em outros territórios era o professor não índio que ensinava nossos alunos. Então a gente não tinha escola indígena, a gente tinha que vir até a cidade. Eu tive que estudar na escola do não índio por falta de escola, por falta de professores formados dentro do território. Então eu estudei até o quarto ano na aldeia e depois tive que sair para poder fazer o ensino médio fora. Hoje nós já temos nossas escolas, já temos alguns professores formados em cursos de graduação em: história, português. E a importância do professor (indígena) na licenciatura Intercultural é porque ele vai dar nome e força para as escolas, força para o movimento que quando a gente reivindicar o MEC, quando a gente reivindicar para o estado, para o secretário da educação, a gente fala não, nosso povo precisa dessa formação, falamos: nosso povo tem essa formação para poder trabalhar com os alunos e assim dar credibilidade ao povo. A formação acaba ajudando nesse sentido. E por isso mesmo, né? É necessário ter um professor formado na área do próprio povo para trabalhar com nossos jovens, nossos anciãos e nossas crianças.
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Parente, em sua fala anterior aponta as dificuldades de permanência dentro do curso. Você destaca que a Universidade precisa respeitar a tradição, a cultura, os rituais dos povos. Então pensando em soluções para essa problemática, como a Universidade pode atuar como uma aliada dos estudantes indígenas, respeitando essa diversidade expressada neste coletivo formado por estudantes de cincos etnias: Tumbalalá, Tupinambá, Kariri, Pataxó e Pataxó Hãhãhãe? Quais seriam as soluções, então, para que a universidade possa pensar em metodologias e práticas que respeitem essa diversidade indígena?
Atã Xorã Tupinambá de Olivença: Nós temos no nosso curso professores (indígenas), duas professoras que são do povo, do povo mesmo, professores indígenas que trabalham no território, então a universidade precisa ouvir mais os anciãos. Precisa ter mais professores doutores da própria comunidade para poder ensinar o próprio povo. E também a universidade precisa melhorar a estrutura, a universidade é em Salvador e lá não tem uma estrutura, não tem um local para você acampar, poder ficar. Então ficamos sem espaço para gente fazer nossos rituais, para gente fazer o nosso trabalho lá . E que a universidade ouvisse sempre a comunidade em alguns setores para poder fazer esse alinhamento. Comunidade e universidade nesse sentido, poderia estar fortalecendo mais o povo, os povos e os estudantes.
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Eu queria saber também quando vocês estão neste momento presencial na Universidade, percorrendo os corredores da UFBA, como é a recepção dos outros estudantes não indígenas e dos professores? Como é ser indígena dentro da UFBA?
Atã Xorã Tupinambá de Olivença: A UFBA é um espaço que a gente ainda estamos retomando. E a gente vai retomar e ocupar, mas ainda estamos no primeiro semestre. E na primeira visita que a gente foi a Salvador, a gente sofreu um pouco de preconceito. Uma parte do nosso grupo foi ao RU da Universidade e foi maltratado por alguns dos servidores que estavam lá. Uma parte do grupo que faz a merenda, que despacha a merenda, a gente foi tratada mal, alguns colegas assim de outros cursos que encontramos nos corredores também fez alguma algazarra, algumas palavras de mau sentido relacionadas à nossa cultura, falando que o índio não tinha que viver dessa forma. Então, com aquelas palavras pejorativas, acaba ofendendo um pouco a parte da nossa cultura. Mas assim, é um espaço ainda que nós estamos disputando, estamos nessa retomada desses espaços e esse é algo novo para alguns. Não é o meu caso porque já fiz a primeira universidade, eu já fiz um magistério, mas já foi um pouco diferente. É diferente, porque a gente tem que ficar um mês na universidade, ficar um mês fora do território, um mês na Universidade estudando e assim é novo para nós, para mim mesmo, é um mês fora do território. Muito complicado porque deixar a família e deixar nossos filhos, deixar nosso costume do território para ficar em outro espaço para poder estudar. Então o momento vai ser muito assim, difícil para o povo mas buscamos força nos nossos encantados, buscando força alguns colegas de outros cursos que tem lá. Fazemos grande parte da amizade e buscando força dos parentes mesmo, nos anciãos e caciques para estarmos juntos nessa caminhada.
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Algo que achei muito importante e bonito foi o canto que o grupo de estudantes da intercultural indígena da UFBA entoaram na abertura do tempo-comunidade no chão da Escola Estadual Kiriri José Zacarias. Penso que através desse canto vocês demarcam o lugar indígena dentro de um espaço que ainda mantém resquícios coloniais. Gostaria que finalizamos essa conversa entoando esse canto de demarcação e retomada indígena!
“Vamos todos, meus parentes, eu quero a sua companhia povo da inter chegou aqui para estudar na federal da Bahia! É balançando o Maracá pra nossa força aumentar É balançando o Maracá pra nossa força aumentar….”
Vamos todos, meus parentes: Atã Xorã Tupinambá de Olivença
Atã Xorã Tupinambá de Olivença: Nosso povo sempre trabalha com música, com canto, para poder ter um momento de alegria. Então, como tínhamos cincos povos diferentes, reunimos o grupo e fizemos o canto. É um canto bastante conhecido que adaptamos a realidade do curso.
Ybypotyrá Juerana Anté Kren: Continuaremos balançando nosso Marcará, ocupando espaços de poder como a UFBA. Os indígenas do Nordeste e da Bahia têm acessado as universidades públicas e a partir disso, têm feito um trabalho muito bonito de formação, aperfeiçoamento e empoderamento profissional para atuar em seus territórios, na defesa dos conhecimentos e da ancestralidade. Desejo a você e a todos os parentes muita força para guerrear dentro de um espaço de disputa como a universidade. É muito importante não esquecermos que o nosso corpo se move na luta. Dentro da universidade, a gente escreve nossa história, escrevendo sobre o nosso povo, para que não venham outros e “comprem” nossas narrativas e transformem mercadorias, porque para nós, indígenas, conhecimento não é uma mercadoria, é ancestralidade! É a força dos nossos mais velhos que vivem através dos nossos corpos e das nossas escritas. Parente, te eu te respeito e te vejo enquanto uma liderança muito consciente da luta. Queria pedir permissão para publicar esta conversa na Rádio Yandê, tudo bem?
Atã Xorã Tupinambá de Olivença: Está certo, podemos estar utilizando para divulgar nossa história, nossa luta… Para que outros colegas, outros parentes que estão nessa caminhada também chegue junto com a gente.
Colunista: Ybypotyrá Juerana Anté Kren, indígena Guerém, mestrando no Programa Literatura e Cultura – UFBA. Instagram: @Yby.kren
Observação: Para a transcrição desta entrevista, gravada com a permissão de Atã Xorã Tupinambá, utilizamos o aplicativo Transkription. Buscamos preservar a oralidade, respeitando as particularidades da fala do entrevistado.
“Os conteúdos, opiniões e reflexões apresentados neste artigo ou reportagem são de inteira responsabilidade de seus autores(as). Este veículo de etnomídia indígena tem como compromisso promover a pluralidade de perspectivas, amplificar as vozes dos povos indígenas e valorizar a riqueza das culturas originárias. Ressaltamos que as opiniões expressas não representam, necessariamente, a posição editorial deste veículo, que se dedica ao fortalecimento das narrativas ancestrais e contemporâneas em um espaço de diálogo, respeito e livre expressão responsável.”