Pegadas Indígenas no Rio de Janeiro: um chamado à Memória e Resistência

Por Dauá Puri*

Visita guiada à Aldeia Vertical do Estácio e horta: a importância de compartilhar saberes indígenas em contexto urbano

Eu, Dauá Puri, indígena da etnia Puri, escritor, músico e contador de histórias, venho compartilhar minha visão sobre a urgência de resgatar e valorizar as pegadas indígenas que moldaram o Rio de Janeiro, mas que foram soterradas pela ocupação colonial e pelo avanço da cidade. Como idealizador do Museu da Cultura Puri, acredito que é nosso dever reacender a memória ancestral dos povos originários, como os Tupinambá, Puri, Goitacá e Temiminó, que habitaram milenarmente este território, e cujas histórias ecoam em locais como Uruçumirim, na atual região da Glória.

Uruçumirim não é apenas um ponto geográfico; é um chão de memória, o epicentro da resistência ancestral carioca. Ali, em 1567, os Tupinambá lutaram bravamente na Batalha de Uruçumirim contra a colonização portuguesa, um marco invisibilizado na história oficial do Rio. Este território, onde o rio Cari descia do Catete até a Baía de Guanabara, abrigava aldeias vibrantes que foram arrasadas e substituídas por igrejas e fortalezas coloniais. Hoje, Uruçumirim é um símbolo de apagamento, mas também de ressurreição histórica. Como disse Anápuàka Tupinambá, é um “território de memória, luta e ancestralidade”, e cabe a nós transformá-lo em um sítio histórico reconhecido, com placas, ações educativas e visitas guiadas protagonizadas por indígenas.

No Museu da Cultura Puri, buscamos irradiar essa consciência. Criado para difundir as identidades indígenas, o museu é um espaço de museologia indígena contemporânea, onde apresento minha etnomúsica Puri, com flautas, pios e violas de bambu, além de exibir artefatos, literatura e artesanato de diversos povos. Recentemente, recebemos estudantes da Faetec-Ipanema, orientados pelos professores João Paulo Monte de Santana e Cecília Guimarães Bastos, em uma aula prática de “Turismo Crítico”. A visita, articulada pela indígena Walkiria Terena, incluiu a Horta Medicinal Dja Guata Porã, no condomínio Zé Keti, no Estácio, liderada por Niara do Sol há dez anos. A horta, com sua diversidade de plantas medicinais, surpreendeu os alunos e reforçou a sabedoria indígena na relação com a natureza.

Walkiria, do povo Terena, destacou a resistência de sua cultura, preservada em danças, pinturas corporais e cerâmicas que retratam o Pantanal. Sua fala ecoa o que defendo: divulgar nossa identidade é um ato de resistência e resiliência. Mesmo migrando para as cidades, não apagamos nossas tradições. Pelo contrário, as reavivamos, como na Aldeia Vertical do Estácio, onde diferentes etnias convivem, enfrentando os desafios de uma metrópole enquanto mantêm viva sua conexão com a ancestralidade.

A visita dos estudantes também reforçou a necessidade de um roteiro turístico que revele as áreas indígenas do Rio, como a Glória, terra sagrada soterrada. Proponho que esse roteiro, apoiado pelo Museu da Cultura Puri, seja um instrumento de reparação histórica, sensibilizando a sociedade para a presença indígena que nunca deixou de existir. A cultura indígena não é passado; ela pulsa nos corpos e histórias de hoje, desafiando o silenciamento imposto pelos “canhões dos Mais”.

Preservar nossas tradições, como fazemos com a ciência e o saber tradicional, é um compromisso com as futuras gerações. Que o Rio de Janeiro reconheça Uruçumirim como seu “ponto zero indígena” e que, juntos, possamos construir uma cidade que honre suas raízes originárias, com dignidade e respeito.

*Colunista da Rádio Yandê, Dauá Silva é da etnia Puri, do Rio de Janeiro. É o primeiro cidadão indígena a integrar, oficialmente, o Conselho da Cidade do Rio de Janeiro (Gestão 2025-2028), espaço de formulação de políticas públicas e de diálogo entre sociedade civil e poder público. É professor formando pela Universidade Federal de Viçosa (MG), escritor, poeta e compositor, pesquisador da história e língua da etnia Puri, povo originário na região sudeste. É idealizador do Museu da Cultura Puri, um dos mais ativos projetos de valorização da memória e arte dos povos originários na região sudeste. Lançou o primeiro livro bilingue Puri/Português Tempo de Escuta – Alkeh Poteh e Histórias infantis, além de outras publicações. Esse artigo faz parte de sua investigação “Cultura indígena do sudeste, memória e sua guarda – Os Puri e sua Identidade“.

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