
Os dois primeiros meses de 2025 já se foram, mas não poderíamos deixar de expressar o quão são importantes para todos nós, indígenas e para não indígenas, afinal há muito o que aprender sobre os nossos, que por essa Pindorama já andavam. Primeiro, porque o dia 20 de janeiro marca a Consciência Indígena. Depois, 7 de fevereiro, o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas e, logo após, em 21, celebramos o Dia da Língua Materna Indígena.
A união dessas datas nos leva a uma urgente, necessária e importante luta, que não deve ser esquecida ao lado da nossa resistência política, cultural e social: demarcar o nosso território comunicacional, exercendo a nossa cidadania comunicativa. Porque, assim como resistimos em demarcar nosso chão de terra, de memórias, de afetos e de ancestralidade, a luta pelo direito à nossa própria comunicação e expressão deve caminhar junto!
Se para cada uma das mais de 305 etnias e 274 línguas faladas, a terra é um corpo vivo que se integra à experiência do ser e da vida*, e que não pode ser violado, subjugado e entendido como recurso produtivista a ser explorado pelo sistema colonizador, cretino e selvagem neoliberal, a nossa voz é a própria força sublime de nossos corpos material, mental e espiritual.
A comunicação é nosso direito!
Ora guardiã de culturas e cosmovisões, ora arma potente de denúncia e luta, a nossa oralidade é um direito individual e social reconhecido pelo Artigo 231 da Constituição Federal[1], que respalda o reconhecimento pelo Estado de nossos grupos, respeitando nossas organizações sociais, usos, costumes, línguas e tradições, nossos modos de viver, criar e fazer, bem como valores culturais, artísticos e todas as nossas formas possíveis de expressão.
O mesmo Artigo estabelece que medidas eficazes deverão ser adotadas por esse mesmo Estado para assegurar que os meios de informação estatais reflitam devidamente a diversidade cultural indígena e sem prejuízo da obrigação de assegurar plenamente a liberdade de expressão. Deverá, ainda, incentivar os meios de comunicação privados a refletirem devidamente a diversidade cultural indígena e promover campanhas de valorização das expressões culturais indígenas.
Comunicação Indígena no Brasil tem a sua história, sim!
Muito antes das antigas comunidades em redes sociais, como Orkut (quem lembra?), dos blogs, dos canais de vídeo e streaming, dos perfis de influencers indígenas (e que você certamente segue!), a Comunicação Indígena já tinha a força de inúmeros comunicadores espalhados pelo Brasil, e que resistiram ao cenário dominado pela crueldade da ditadura militar: Marçal Tupã’ Y, Aniceto Xavante, Daniel Cabixi, Andila Kaingang, Eliane Potiguara, Xicão Xukuru, Angelo Kretã, Ailton Krenak, Álvaro Tukano, Biraci Yawanawá e tantos, tantos outros.
Antes de partir para as fitas cassete ou para os rolos em VHS, esses líderes e comunicadores se reuniam com suas comunidades e fomentavam a participação dos parentes em Assembleias de Chefes Indígenas entre os anos 1970 e 1980. Nos encontros, com poder decisório coletivo, articulavam estratégias próprias de luta e posicionamento em contraponto à política indigenista da “tutela” da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), que mesmo sendo criada em 1967, para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), até sair a promulgação da Constituição de 1988, rezava a cartilha do seu antecessor (ou, será que ainda continua, sob o pretexto de uma presidência indígena, a fim de aplacar os ânimos históricos de nossas nações?). Já contavam Egydio Schwade e Clóvis Brighenti**, chamando a nossa atenção para a terceira parte das assembleias:
A dinâmica das assembleias consistia em três tempos: autoapresentação dos participantes; primeiras informações sobre suas áreas, com relato dos principais problemas; e a descoberta de soluções. A terceira parte foi feita pelo povo, sem a participação de nenhum “civilizado”, o que era tolerado nas duas primeiras partes. A não participação de pessoas não indígenas no momento das decisões dava aos líderes indígenas a liberdade de falarem à vontade, sem influência estranha. Mas, mesmo nas duas primeiras partes, os não indígenas que participavam se mantinham calados (Schwade, 2021, p. 28-29).
Cerca de 85 povos chegaram a participar das assembleias, sendo a Articulação feita por eles, o que significa mais da metade dos povos, segundo os dados na época. Foi desta participativa, coletiva, que não reside na mão de poucos, que a luta pela demarcação dos territórios, bem como a presença indígena no cenário político social se consolidaram, reconhecendo a TI Nonoai, no Rio Grande do Sul, a TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, por exemplo.
Após 50 anos, assembleias em Roraima, Diamantino, no Mato Grosso, uma das primeiras a iniciar esse levante, continuam. Os chefes indígenas necessitam da oportunidade de se conhecerem e de falarem, por eles mesmos, com total liberdade, sem tramas políticas que vem de fora ou das que já acontecem desde dentro. Naturalmente, há o desafio das lutas, contradições e sacanagens que partem de um colonialismo desde dentro, onde chefes, caciques e lideranças já nascem de gerações que acreditam que a “cadeia” é punição indígena, que arrendar terra dentro das comunidades é uma prática justa e que o progresso só chega com a soja e de carona na Hilux.
A nossa Comunicação e seu potencial expressivo e libertário inicia no chão da aldeia, cresce acompanhado da tradição e do fortalecimento da cultura do pensamento crítico a partir de sua própria organização, sem intermediários a fim de destruir esses alicerces de conhecimento.
Para que continuemos a Comunicação Indígena, é preciso olhar para a história comunicacional que já vivemos, honrar nossos comunicadores, seus movimentos e encontros, para que possamos semear uma autocomunicação crítica, fundamentada, consolidada. Elaborar nossas próprias estratégias midiáticas e pensar, coletivamente, a nossa articulação atual do movimento indígena que não reside no holofote e microfone de cinco ou seis etnias, mas na voz de todas as suas comunidades.
Referências
* Bonin, Iara Tatiana; Liebgott, Roberto Antonio. Necropolítica e violências contra os povos indígenas no Brasil. Revista Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 10, n. 16, p. -, jan./jun. 2022.
**Brighenti, Clovis Antonio; Heck, Egon Dionisio (Orgs). O movimento indígena no Brasil: da tutela ao protagonismo (1974-1988). Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2021.
[1] Disponível em:<https://constituicao.stf.jus.br/dispositivo/cf-88-parte-1-titulo-8-capitulo-8-artigo-231>. Acesso em: 11.mar.25.
Redação Radio Yande e Raquel Gomes Carneiro – Doutora em Ciências da Comunicação PPGCCOM/Unisinos
Linha de Pesquisa 3 – Cultura, Cidadania e Tecnologias da Comunicação
Integrante Grupo de Pesquisa PROCESSOCOM e Membro REDE AMLAT
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