
Desde tempos imemoriais, nós povos originários compreendemos que o tempo não é uma linha reta, mas um círculo onde passado, presente e futuro estão entrelaçados. Nossa existência não se limita ao momento em que caminhamos sobre a terra; somos parte de uma continuidade, de um fluxo que atravessa gerações.
Essa compreensão se reflete em uma antiga sabedoria que compartilharei com vocês: a história de Ará e a mais velha Tupinambá.
A Parábola de Ará
No tempo em que os primeiros espíritos moldaram a terra, os povos ainda aprendiam a andar sobre o chão sagrado. Havia um jovem chamado Ará, cujo coração era inquieto. Ele queria ser lembrado, queria deixar algo grandioso para aqueles que viriam depois.
— O que faz um grande ancestral? — perguntou a anciã mais velha, o “Îara Pü”, algo como “velho (velha) sábio (sábia)” ou “ancião (anciã) aldeia, Tupinambá.
A velha ancião sorriu e apontou para uma árvore antiga, de tronco largo e raízes que se entrelaçavam com a terra como dedos de uma avó segurando a mão de seu neto.
— Veja aquela árvore — disse o Tupinambá. — Ela foi plantada por alguém que nunca se sentou à sua sombra.
Ará franziu a testa, sem entender.
— Mas se nunca pôde aproveitar dela, por que plantou?
A anciã tocou a terra com suas mãos trêmulas, respirou bem fundo e respondeu calmamente:
— Porque sabia que um dia, alguém cansado encontraria descanso. Porque entendia que suas ações não pertenciam apenas a si, mas a todos que viriam depois.
Ará passou anos e anos pensando naquela árvore. Quando se tornou um ancião, escolheu um lugar na aldeia e plantou uma nova semente. Outros riram, dizendo que ele nunca veria seus frutos.
Mas Ará apenas sorriu.
— Eu não planto para mim. Planto para aqueles que, um dia, sentirão sede e precisarão de sombra.
E assim, geração após geração, cada pessoa que passava por aquele solo entendia a lição: ser um bom ancestral não é esperar reconhecimento, mas agir com sabedoria hoje para que amanhã, mesmo sem saber nossos nomes, nossos descendentes sintam nossa presença no vento, na terra e na sombra de uma árvore.
O Legado dos Povos Indígenas: Plantar para o Futuro
Essa história é inspirada e reflete um ensinamento de memoriância que atravessa diversos povos originários do universo conhecido e desconhecido. Os Haudenosaunee, conhecidos como a Confederação Iroquesa, seguem a Regra das Sete Gerações, um princípio que orienta a tomada de decisão sempre considerando os impactos para aqueles que ainda estarão vivos no futuro. Na mesma linha, muitos povos indígenas do Brasil compreendem o tempo de forma cíclica, entendendo que nossas ações ecoam por décadas e séculos. Neste caso trago esta parábola Tupinambá que ouvi na minha infância na aldeia, a T. I. Caramuru Catarina Paraguassu, em Pau Brasil, Bahia, em uma roda de fogueira, sentadinho em meu canto somente ouvindo os causos e lorotas dos mais velhos numa noite de junho de 1986, há quase 39 anos. Eis compartilho com vocês este conto.
Na sociedade contemporânea, o imediatismo e a busca por resultados rápidos obscurecem a importância de pensar a longo prazo. O que estamos construindo para as próximas gerações? Como garantimos que nossos descendentes tenham terras, rios e florestas saudáveis para viver? Como preservamos os saberes e a cultura que nos foram transmitidos? Qual é a sua *memoriância?
Ser um bom ancestral hoje significa lutar pela preservação dos territórios indígenas náo importa aonde você esteja, proteger a biodiversidade, fortalecer as culturas antepassadas e valorizar os saberes e conhecimentos que vieram antes de nós. Significa entender que nosso papel não é apenas existir, mas preparar o caminho para aqueles que virão depois.
Seja um Bom Ancestral Agora!
A mensagem de Ará e da anciã Îara Tupinambá é um chamado para todos nós. Cada ação que tomamos tem consequências, e cada escolha que fazemos pode ser uma semente plantada para o futuro. O mundo está em transformação, e precisamos decidir se seremos aqueles que destroem ou aqueles que regeneram.
Que possamos plantar boas sementes hoje, mesmo que não vejamos seus frutos, pois a verdadeira grandeza está em garantir que, no futuro, outros possam caminhar por terras saudáveis, beber água limpa e encontrar sombra quando precisarem descansar.
O que é esta tal de Memoriância?
*Memoriância é o ato de lembrar e honrar o passado de forma viva, conectando-o ao presente através de memórias, histórias e práticas. Vai além de apenas lembrar os antepassados — é manter suas vozes e saberes ativos.
Exemplo de memoriância indígena: Um avô Tupinambá ensinando o neto a cantar uma canção tradicional que fala da criação do mundo, enquanto pescam juntos no rio, passando a memória dos antepassados para a nova geração.
Seja um bom ancestral hoje. Se possível, seja agora.
Por Anápuàka M. Tupinambá Hãhãhãe – @anapuakatupinamba