
Tupinambeat-high-tech visionário, o etnocomunicador, um dos fundadores da Rádio Yandê, faz aniversário neste domingo (06/04). E, me faz pensar: onde a Comunicação Multimidiática Indígena pode chegar?
*Por Raquel Gomes Carneiro
Nas costas da obra “Paletó e eu”, de Aparecida Vilaça (2018), um escrito cheio de fagulhas iluminadas de memórias, o escritor moçambicano Mia Couto diz algo difícil de esquecer: “Contar a história de um outro é converter-se nesse outro”. Essa quase metamorfose se dá, acredito, porque antes de contar, é preciso saber escutar a palavra. Desafiador, o exercício dá um nó na garganta de quem passa pela quase doutrina do “faça perguntas” numa faculdade de Comunicação. Mas, eu sentia que precisava fazer o caminho inverso: o saber fazer escutar a palavra, como dizem os Guarani Mbyá, a palavra compreendida como carne viva!
Como ouvinte da Rádio Yandê, desde 2014, todos aqueles corpos, formas musicais e saberes cantados, expandiam minhas percepções sobre línguas, culturas e tradições dos povos indígenas do Brasil. A programação, 24h no ar, fazia até mesmo esquecer que não eu entendia nada do que falavam! Então, como jornalista e radialista, por que não aprender mais com a Comunicação da primeira webradio indígena do meu país? Foi aí, que comecei a praticar o “Senta, que lá vem história”, jargão daquela vinheta do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum.
Escutei Anàpuáka Muniz Tupinambá Hã Hãe pela primeira vez, em 2017, no Itaú Cultural. Carregava na minha bolsa um par de perguntas semiestruturadas, que dariam vida e sustância a uma dissertação, que trabalharia com a Comunicação Indígena da Rádio Yandê. Nos apresentamos, encontramos dois banquinhos no corredor e ali mesmo, liguei meu gravador para início da nossa prosa. Desde lá, elaboramos juntos uma dissertação e uma tese, enquanto meu coorientador, e nunca mais lembrei das perguntas daquelas peles de papel, como diz Davi Kopenawa (2015). O que era para ser uma hora de conversa, se transformou em quase oito anos de bate-papo. Até hoje, nas pequenas pausas do meu cérebro, diante de tanta informação, penso: como consigo tramar os fios dessas histórias que ele conta, guardando tudo na minha memória?
Aquele menino criado na favela Nova Divinéia, em São Paulo, que sentia saudade da roça ao ouvir os programas de rádio do Zé Bettio, na Rádio Capital nos anos 1980, que também viveu parte da retomada da Terra Indígena (TI) Caramuru-Paraguassu, em Pau-Brasil, na Bahia. Lá, entrava na casa da tia Lucília e do tio Manoel, que apelidavam de Manoel Gato Brabo, e avistava um grande rádio que comportava muitas pilhas. Juntos, escutavam a Voz do Brasil, a Rádio Nacional e, depois, assistiam ainda as comédias “Balança, Mas Não Cai” e “Chico City” na televisão. Já no Rio de Janeiro, o menino que não pode ir à escola, em razão do conflito na TI, consumia livros, quadrinhos e discos feito louco. Se tornou pai, avô, Dj, locutor de rádio, etnocomunicador e empreendedor. Seus planos, ideias e sonhos visionários, vem me ensinando sobre a liberdade e a sabedoria de entrelaçar conhecimentos de mundos (in)vísiveis. Para conseguir isso, diz ele: “seja uma boa ancestral hoje”, tocando na ferida da minha própria descolonização.
Um descolonizar que não trata de uma ação passiva e estagnada ao olhar para as histórias de todos os meus que vieram antes, mas sobre honrar seus seres e tempos para que meu livre-arbítrio, diante de minhas raízes, possa fluir aqui e agora. É sobre dar um passo diário de aceitação da profunda mescla dos matizes que me colorem mestiza, como provoca a grafia de Graça Graúna (1999), ao assumir a violência cretina da qual sou filha, somada à invisibilidade e ignorância sobre as tantas tradições e culturas que atravessam meu sangue. Mas, acredito: é tempo, urgente, de sabê-las e vivê-las!
Assim, na minha condição de mulher, branca, comunicadora, me sabendo e sentindo em Pindorama e latino-americana, agradeço a beleza de poder aprender com a Comunicação Indígena. Um fazer político-comunicacional em que a escuta de memórias, a elaboração e gestão da pauta de maneira coletiva e o respeito ao tempo e narrativa do corpo do outro e da natureza, dentro e fora, são muito, muito mais valiosos do que qualquer “furo de reportagem”. Fui aprendendo que a informação só é válida se trilhada em princípios justos, igualitários e cidadãos, a partir dos modos de ser e estar no mundo de cada indivíduo e sociedade.
E é por tudo isso, pelo rumo dessa prosa que, para homenagear o aniversariante do final de semana, compartilho 6 falas de Anàpuáka para pensar a Comunicação Indígena. No sincerão dessas falas, ele vestiu o meme dos óculos escuros e me provocou a refletir durante meses! Se você não sabe, a foto ou gif do óculos de sol preto pixelado, já famoso no rosto de Edson Kayapó, significa algo como: “Toma essa!”
Feliz Hoje, Anàpuáka!
6. “Tem alguém com algum grafismo aqui? Você está carregando um QR Code indígena. São os primeiros QR Codes. Então, é a tecnologia e isso mostra! Tem muita informação carregada aí! Você não está levando simplesmente um desenho no corpo, está levando comunicação, mídia, meio. Na realidade, isso é muito importante. Nessa construção e, de ter esse entendimento, que as populações indígenas e as diversidades indígenas, que cada um tem sua forma de comunicação, vem a questão da etnicidade. Então, não dá pra fazer comunicação de massa pra indígena!”.
5. “Quando falo em Tecno Repangea é um termo que evoca reconectar e unir o mundo através da tecnologia e do conhecimento antigo, baseado no antigo supercontinente Pangeia. “Tecno” refere-se ao uso da tecnologia de ponta, incluindo inteligência artificial, blockchain e outros que estão surgindo, enquanto “RePangea” evoca o conceito de reconectar todas as diferentes culturas e nações, particularmente indígenas globais, em uma ação conjunta de reconexão e colaboração. A Tecno Repangea é uma ação de reconectar todos, especialmente a sabedoria ancestral indígena, com a tecnologia e uns com os outros”.
4. “Projetos como a Rádio Yandê e o Yby Festival são exemplos de como a Comunicação Indígena pode ser fortalecida fora dos moldes das mídias massivas e de consumo, mas também utilizando das tecnologias digitais, analógicas e ancestrais, para criar e fomentar nossas próprias redes de informação e cultura. Temos os nossos meios de lembrar nossos conhecimentos, de relembrar as nossas práticas, de desenvolver nossos processos, como também podemos modificá-los. Nossa ancestralidade nos permite criar comunicações em um tempo que não é linear e nunca será, utilizando tecnologias digitais, analógicas, orgânicas, visíveis e invisíveis para criar nossas próprias redes de informação, de cultura e de vida!”.
3. “Durante um projeto para indígenas na Baía da Traição, na terra lá da Eliane Potiguara, eles queriam que eu só ensinasse os parentes a usarem câmera e gravador. Eu falei: ‘Não! Vou ensinar eles a pensar a Comunicação’. Esse é meu aspecto. Era pensar as linguagens comunicacionais possíveis a partir do processo cultural de cada povo. Cada povo, a partir da sua realidade, dentro do seu território, constrói a sua comunicação! Primeiro para dentro, depois para fora. A terminologia, o prefixo “etno” é para empurrar garganta abaixo da academia, porque eles têm que nos aceitar, de alguma forma! E isso mudou um cenário, a ponto que isso hoje é ensinado nas universidades. Hoje se faz questão, né?”.
2. “A etnomídia, a etnomultimídia, é a projeção do futuro da comunicação. Porque ela é conectada à ancestralidade indígena. Ela tem os parâmetros culturais como aspectos de um meio para impulsionar as ações, a história, a memória de várias nações. É garantir territórios. Esses territórios que podem ser digitais, analógicos, espirituais, e seus vários impulsionadores étnicos indígenas, artistas, comunicadores, pensadores, construtores das linhas escritas com outras narrativas, em outras línguas. E, mostrar aqui, que os 305 povos indígenas que existem no país, em suas mais de 274 línguas indígenas, não são só a base primária dessa nação, mas o futuro para o amanhã”.
1. “Quando eu digo ‘seja um bom ancestral hoje’, significa dizer do respeito a cada nação indígena que garante a nossa vida presente sobre terras repletas de espíritos e cultivadas por um sangue ancestral o qual, repetidamente, ignoramos por estupidez e racismo estruturais colonizados”.
REFERÊNCIAS
Graúna, Graça. Canto Mestizo. Maricá/RJ: Blocos, 1999.
Kopenawa, Davi.; Albert, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. 1 – ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Muniz Tupinambá Hã Hã Hãe, Anàpuáka. In: Carneiro, Raquel Gomes. Etnomultimídia indígena: configurações de vozes de uma demarcação etnomulticomunicacional cidadã e descolonizadora no Brasil 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2023. Disponível em:< http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/12433>. Acesso em: 06.Abr.25.
______________.In: Carneiro, Raquel Gomes. Sujeitos comunicacionais indígenas e processos etnocomunicacionais: a etnomídia cidadã da Rádio Yandê. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2019. Disponível em:< http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/8195> Acesso em: 06.Abr.25.
______________.“Mídia de massa não funciona para propagar comunicação indígena”: um dos fundadores e coordenadores da Rádio Yandê, fala sobre as tecnologias de comunicação indígena, da pintura corporal à produção audiovisual, durante o evento Mekukradjá – Círculo de Saberes, ocorrido no Itaú Cultural. São Paulo, 6 de out. 2017. Disponível: <https://soundcloud.com/itaucultural/anapuaka-tupinamba>. Acesso em: 06.Abr.25.
Vilaça, Aparecida. Paletó eu eu: memórias de meu pai indígena. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018.