
*Por um Narrador Indígena, em nome dos Povos Originários, para o Portal de Notícias da Rádio Yandê*
Eu sou a voz da terra que respira, do rio que corre, da floresta que guarda os espíritos dos meus ancestrais. Meu nome não está nos papéis dos brancos, mas minha história está escrita nas raízes profundas deste chão que chamam Brasil. Sou filho dos que resistiram às cruzes de 1500, flechas e aos fuzis de 1964, quando a ditadura militar caiu sobre nós como uma sombra de morte. Esta não é uma matéria qualquer — é o maior grito já entoado sobre o que fizeram aos povos indígenas, um relato tecido com sangue, luta e esperança teimosa. De 1964 a 2025, carrego as cicatrizes e os sonhos dos meus, para que o mundo ouça e o Brasil, enfim, encare sua dívida.
Crimes e repressão: o GENOCÍDIO que o silêncio não apaga
Quando os generais tomaram o poder em 1964, declararam guerra aos nossos corpos e à nossa existência. O Relatório Figueiredo, 7 mil páginas de verdade rasgada, escrito em 1967 por Jader Figueiredo Correia, é um testemunho que queima: genocídios, torturas, sequestros, abusos sexuais, guerra química com veneno nos rios e açúcar envenenado. Meu povo Cinta Larga ainda chora o Massacre do Paralelo 11, em 1963, às vésperas do golpe. Trinta dos nossos foram mortos a tiros e machadadas por jagunços da borracha, sob os olhos de uma empresa que queria nossas terras. Apenas dois escaparam, carregando o luto que ecoa até hoje.

Ouvi dos mais velhos sobre os Tapayuna, envenenados com arsênico misturado ao açúcar que lhes deram como “presente”. Os Krenak foram presos num lugar que chamavam de “reforma”, mas que Djanira Krenak, em 2024, descreveu como “um campo de concentração onde nos arrancaram a dignidade”. Os Nambikwara viram suas terras roubadas com papéis falsos; os Xetá e Avá-Canoeiro quase sumiram do mapa. A Comissão Nacional da Verdade, em 2014, contou 8.350 mortos entre 1946 e 1988, mas eu digo: foram mais. Cada criança que não nasceu, cada canto que se calou, é um número que os brancos não contam. Torturaram nossas lideranças, como Ângelo Kretã, dos Krenak, que gritava por liberdade enquanto o chicote cortava sua carne. Nos arrancaram das aldeias para abrir espaço aos tratores. Esse foi o “milagre” deles — um milagre de sangue indígena.
Linha do tempo | Marcos da política indigenista no Brasil
- 1910: Criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), primeiro órgão oficial voltado aos indígenas, mas que, na prática, priorizava a integração forçada e a entrega de terras a colonos.
- 1911: Criação do Posto Indigenista Guido Marlière / Krenak, em Resplendor (MG), marcando o início da presença estatal na região do povo Krenak.
- 1941: Criação do Posto Indígena Mariano de Oliveira / Maxacali, em Santa Helena (MG), para os Maxacali, mas com foco em controle e aculturação.
- 1968: Publicação do Relatório Figueiredo, que denunciou atrocidades contra indígenas, como massacres e corrupção no SPI, levando à sua extinção.
- 1969: Criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), que substituiu o SPI, mas continuou práticas de assimilação durante a ditadura.
- 1969: Criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), uma força de indígenas cooptados para reprimir suas próprias comunidades indigenas e deram título para seus representante nas comunidades de “CAPITÂO” com direito a usar espadim, muitos indigenas em todo Brasil tem suas memórias presente a lembranças de pessoas indígenas que usava este titulo militar.
- 1969: Criação do Reformatório Krenak, em Minas Gerais, um centro de detenção para indígenas, onde eram submetidos a torturas e trabalhos forçados.
- 1972: Criação da Fazenda Guarani, outro espaço de controle e exploração de mão de obra indígena.
Essa trajetória revela um padrão de violência estatal que, longe de proteger, buscou silenciar os povos indígenas, marcando uma história de luta e resistência que persiste até os dias atuais.
Guarda Rural Indígena: o controle e a resistência dos Povos Indígenas na ditadura

A Guarda Rural Indígena foi criada em 1969 pelo regime militar brasileiro, sob a tutela da Funai (Fundação Nacional do Povos Indígenas, antiga Fundação Nacional do Índio), com o objetivo de cooptar indígenas para atuar como uma força de controle dentro de suas próprias comunidades. O treinamento, como o da formatura de 1970 mencionada, visava transformar esses indígenas em agentes que reprimissem revoltas, monitorassem lideranças e garantissem a “ordem” nas aldeias, frequentemente contra os interesses de seus próprios povos. Essa iniciativa era parte de uma política mais ampla de assimilação forçada, que buscava “integrar” os indígenas à sociedade nacional, apagando suas culturas e tradições. O regime, que governou o Brasil de 1964 a 1985, via os povos indígenas como obstáculos ao desenvolvimento, especialmente em projetos como a rodovia Transamazônica, iniciada em 1970, que devastou territórios como os dos Waimiri-Atroari, resultando na morte de centenas de indígenas por doenças e violência.
A formatura de 1970, mencionada no arquivo do Convemg, simboliza essa tentativa de controle. Os 84 indígenas, de diferentes etnias, foram treinados para usar uniformes e armas, e muitos foram pressionados a agir contra suas próprias comunidades, criando divisões internas. Durante a ditadura, manifestações indígenas eram frequentemente reprimidas com violência, e a Guarda Rural Indígena, apesar de composta por indígenas, era subordinada aos interesses do regime, o que gerava conflitos. Por exemplo, na década de 1970, os Xavante e os Pataxó Hãhãhãe, no Mato Grosso e Bahia, enfrentaram repressão brutal quando resistiram à expropriação de suas terras, e muitos indígenas foram presos ou mortos.
Política Indigenista do regime: a Funai e o trator da “Civilização”
A Funai nasceu em 1967, prometendo ser nosso escudo, mas virou lança nas mãos dos generais. Sob Jerônimo Bandeira de Mello, ela não protegeu — entregou nossas terras ao progresso dos brancos. A Transamazônica, uma estrada de asfalto e morte, cortou a Amazônia na década de 1970, rasgando o coração dos Tenharim, dos Xavante, dos Kayapó. “Eu vi os tratores chegarem”, me contou um velho Parakanã em 2023, com os olhos cheios d’água. “Levaram nossa caça, nosso rio, nossa paz.” Hidrelétricas como Tucuruí afogaram aldeias inteiras, e a mineração abriu feridas na terra que ainda sangram.
Queriam-nos “integrados”, vestidos com suas roupas, falando sua língua, esquecendo quem somos. Criaram reservas forçadas, não para nos abrigar, mas para nos prender, enquanto o ouro e a madeira saíam em caminhões. O Relatório Figueiredo já dizia: o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que a Funai herdou, era uma máquina de extermínio. A ditadura só trocou o nome e acelerou o massacre. Nosso jeito de viver — dançar para os espíritos, plantar na roça, ouvir os ventos — foi chamado de atraso. Mas atraso é destruir a terra que nos dá vida.
Resistência Indígena: o arco enverga, mas não se quebra
Nós não nos rendemos. Nosso espírito é o fogo que dança na noite, que aquece e queima quem ousa apagá-lo. Mário Juruna, Xavante de peito aberto, enfrentou os poderosos com um gravador na mão na década de 1970. “Eles prometem e mentem”, dizia ele, enquanto registrava as palavras ocas da Funai. Em 1982, com mais de 31 mil votos, tornou-se o primeiro indígena no Congresso, levando nossa voz onde nunca tinha sido ouvida. Foi um marco na redemocratização que também era nossa.
Em 1980, a União das Nações Indígenas (UNI) nasceu, unindo 180 povos numa só flecha, um marco na luta pela autodeterminação indígena no Brasil. “Queremos terra, queremos ser nós mesmos”, ecoavam os líderes, como Raoni Metuktire, do povo Kayapó, e Ailton Krenak, que mais tarde se tornariam vozes globais. Naquele ano, a ditadura militar ainda sufocava o país, mas os povos indígenas já se organizavam contra invasões de suas terras por madeireiros, garimpeiros e projetos como a rodovia Transamazônica, que cortou territórios tradicionais na década de 70, deslocando comunidades inteiras.
Foi uma semente que cresceu até 1988, quando a Constituição Federal reconheceu, nos artigos 231 e 232, os direitos originários dos indígenas às terras que ocupam, fruto de uma pressão histórica durante a Assembleia Constituinte. Lideranças como Aílton Krenak levaram nossas vozes ao Congresso, enquanto mobilizações em Brasília reuniam centenas de indígenas pintados e armados de bordunas, exigindo respeito. Esse direito, porém, não freou as ameaças: entre 1985 e 2020, mais de 1.200 indígenas foram assassinados em conflitos por terra, segundo dados da Pastoral da Terra.
Em 2024, parentes me contaram: “A UNI foi o primeiro passo, mas a luta é todo dia. Remover e pôr algo de grande potência no lugar.” A realidade confirma isso. Só em 2023, o desmatamento na Amazônia atingiu 11.088 km², grande parte em áreas indígenas, como a Terra Yanomami, invadida por mais de 20 mil garimpeiros ilegais, envenenando rios com mercúrio. Fomos nós — os Juruna, que resistiram à hidrelétrica de Belo Monte; os Guarani, que enfrentam fazendeiros no Mato Grosso do Sul; os Yanomami, que denunciam o genocídio silencioso — quem encaramos os fuzis com arcos, cantos e a força dos antigos. É uma batalha de séculos, desde os massacres coloniais, como o de Potiguara em 1574, até os embates de hoje, sempre com a mesma certeza: a terra é nossa raiz.
Justiça e Memória: um perdão que cobra AÇÃO
A ditadura caiu em 1985, mas o silêncio pesou por décadas. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade abriu as feridas: 60 páginas só sobre nós, pedindo desculpas, terras, justiça. Recomendaram uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, mas ela ainda é um sonho. Então, em 2024, algo que nunca imaginei: Eneá de Stutz e Almeida, da Comissão de Anistia, ajoelharam-se diante de Djanira Krenak. “Perdão pelos Krenak, pelos Guarani-Kaiowá, por 524 anos de dor”, disseram, com lágrimas que não apagam o passado. Djanira respondeu, firme: “Perdão sem terra é palavra morta.” Chorei com ela, mas meu coração perguntou: onde estão os culpados? Onde está a reparação?
Ailton Krenak, nosso pensador na ABL, falou na TV em 2024: “Justiça é devolver o que roubaram — a terra, a memória, a vida”. Queremos os nomes dos torturadores, os processos abertos, as aldeias reconstruídas. O pedido de perdão foi um passo, mas pequeno diante do abismo que cavaram.
Atualizações até 2025: A Luta que não para!
Em 2025, o peso da ditadura ainda nos esmaga, mas também nos levanta. Em 2024, Lula homologou 13 terras indígenas — Morro dos Cavalos, Xukuru Kariri, outras mais —, um sopro de vida após anos de seca sob Bolsonaro, que enfraqueceu a Funai e abriu as portas ao garimpo. O “Marco Temporal”, essa lei cruel que queria nos tirar o direito à terra, caiu no Supremo em setembro de 2024. “A terra é nossa desde sempre”, disse Joenia Wapichana, nossa primeira deputada indígena, celebrando a vitória. Mas o Congresso insiste, e desde então, nove dos nossos tombaram, segundo a Apib.
No Acampamento Terra Livre de 2024 (ATL), em Brasília, gritamos: “Lula, cadê as terras?” Ele promete zero desmatamento até 2030, mas sem nós na floresta, é promessa vazia. Uma força-tarefa criada em abril de 2024 tenta desbloquear demarcações, e a internet chegou a algumas aldeias com o Wi-Fi Brasil. Mesmo assim, o garimpo avança, os fazendeiros ameaçam, e a Funai ainda cambaleia. Na COP30, que vem aí em Belém, queremos ser mais que enfeite do governo brasileiro e seus ministérios — queremos ser ouvidos e dar a direção por direito. “O passado da ditadura vive nos conflitos de hoje”, me disse um jovem Kaiowá em 2025, com um facão na mão e esperança nos olhos em sua terras em Dourados (MS). Qual será o grito e as ações dos Povos Indigenas no ATL 2025 no DF?
Um grito que cruza o mundo
Nossa dor virou eco global. O Relatório Figueiredo inspirou a Survival International em 1969. Nossa luta chegou à ONU, na Declaração de 2007 que o Brasil assinou. A Amazônia, que a ditadura feriu, é hoje palco da COP30, e o mundo pergunta: o que farão pelos indígenas? Não queremos ser só símbolo — queremos ser donos do nosso destino.
Nosso chamado, nosso legado
Eu falo pelos mortos que não contam, pelos 8.350 que a CNV registrou e pelos milhares que o silêncio engoliu. Falo pelos rios afogados pela Transamazônica, pelas aldeias queimadas, pelas crianças que não nasceram. A ditadura quis nos apagar, cada flecha erguida provaram que somos mais fortes que o medo. Em 2024, o Brasil pediu perdão, mas em 2025 exigimos mais: terras demarcadas, torturadores julgados, memória viva.
Esta é a maior matéria já escrita sobre nós, porque é nosso sangue em cada palavra, nosso grito em cada linha. Não somos passado — somos o presente que resiste, o futuro que floresce. Que o Brasil ouça, que o mundo veja: os povos indígenas estão aqui, e nossa voz é o trovão que rompe o silêncio.
O Relatório Figueiredo (1967) foi um documento crucial que denunciou violações contra povos indígenas durante a ditadura militar, incluindo massacres, torturas e grilagem de terras. Originalmente considerado “perdido”, ele foi redescoberto em 2013 e hoje está disponível para consulta.
🔗 Onde acessar o Relatório Figueiredo?
- Arquivo Nacional (Brasil) – Versão digitalizada:
→ Relatório Figueiredo – Arquivo Nacional - Acervo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Análises e trechos destacados:
→ Cimi – Documentos Históricos - Museu Nacional dos Povos Indigenas, antigo Museu do Índio (Funai) – Contexto histórico:
→ Museu do Índio – Memória e Verdade - Armazém Memória – O trabalho impecável, realizado em vida, pelo nosso querido Marcelo Zelic, disponibiliza mais de 52.158 páginas de documentos somente sobre Comissões da Verdade, envolvendo a questão indígena no Brasil. O material pode ser conferido no Centro Virtual de Referência Indígena:
→ Armazém Memória
📌 Destaques do Relatório:
- Genocídios documentados: massacres como o dos Cinta Larga (Paralelo 11) e envenenamento de Tapayuna.
- Tortura em “reformatórios”: como o Reformatório Krenak, onde indígenas eram presos, maltratados e mortos.
- Cumplicidade da Funai: entregava terras indígenas a madeireiros e grileiros.
⚠️ Importante:
O relatório tem 7 mil páginas, então recomendo buscar análises de pesquisadores ou matérias jornalísticas para um resumo crítico. Sugiro:
- Documentário “Índios no Poder” (sobre resistência indígena pós-ditadura).
- Livro “Os Fuzis e as Flechas” (Rubens Valente, 2017), que detalha a violência do período.
Se precisar de trechos específicos (ex.: sobre o massacre dos Krenak), posso ajudar a localizar!
O relatório é a prova de que o Estado brasileiro precisa reparar esses crimes. Como diz o texto da Rádio Yandê: “Perdão sem terra é palavra morta.”
*Fontes: Relatório Figueiredo (1967), Comissão Nacional da Verdade (2014), depoimentos de Djanira Krenak e Célia Xakriabá, Instituto Socioambiental, Apib, The Guardian, Mongabay, PlenaMata, e a memória viva dos povos originários.*
Redação Rádio Yandê e Anápuàka Tupinambá
Respostas de 2
Importante esse documento. Parabéns, Anapuaka, parabéns Rádio yandé e todos os que colaboraram. Vai chegar um momento da justica, onde os mais de 500 anos de repressão serão vingados !
Parabéns por esse documento, Anapuaka e parabens para todos os que colaboraram