Com quantos corpos se faz uma inteligência artificial?

Foto publicada na matéria do Outras Palavras sobre a
devastação da mineração em terras indígenas.

Tecnologias feitas de terra e sangue

Quando olhamos para os objetos técnicos como telefones celulares, computadores, telas, placas e estruturas computacionais, podemos ter impressão que são objetos mágicos, resultantes de uma arte que não dominamos, pois sim, é uma arte do homem branco, industrial moderno, e ela representa um modo de ver o mundo. Ver o mundo, não apenas projetar seus sonhos e “solucionar problemas”, que é como se costuma entender a grande missão das engenharias. Mas existem muitas camadas invisíveis, dentre elas, vícios de poder, abusos e violências que direcionam todos os povos do mundo a se adequar a sistemas baseados na exploração humana e dos recursos naturais que vêm amplificando os problemas de extremas desigualdades e crises climáticas que vivemos hoje.

Estes objetos necessitam da constante extração de minérios que impacta os povos indígenas, desde os modos de viver no território, na condição de saúde – não apenas de indígenas, mas da população como um todo quando alguns metais como cobre e mercúrio contaminam as águas – até contribuirem nas disputas sobre territórios indígenas. 

Nove mineradoras, Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia , Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto, possuíam em novembro de 2021 um total 225 requerimentos minerários ativos com sobreposição em 34 Terras Indígenas – uma área que corresponde a 5,7 mil quilômetros quadrados – ou mais de três vezes a cidade de Brasília ou de Londres.

Imersos na vida artificial

Como eu não vivi e cresci dentro de um território indígena e já faço parte desta sociedade que busca domesticar as pessoas, a começar com o total afastamento de sua cultura originária (e o mesmo aconteceu com parte dos meus – também ancestrais – Africanos, quando foram colocados em navios negreiros separadamente de outros que possuíam sua mesma língua e cultura), não venho aqui defender que se ignorem as tecnologias tais como a inteligência artificial, pois afinal, como ignorar “o elefante branco na sala de estar” ? Sei que os parentes que têm contato com a sua língua original e cultura, e vivem em territórios mais isolados não têm esse conceito de “sala de estar”, que é também uma invenção do mundo moderno, mas um “elefante branco” chama atenção em qualquer lugar, e ele é uma boa imagem para associar à inteligência artificial. Afinal, um elefante é grande, mas pode ser muito amigável. Ele pode até mesmo transportar pessoas de um lugar a outro. 

Uma outra imagem, mais emblemática, que pode ser associada à inteligência artificial é o Cavalo de Tróia, uma lenda antiga da cultura do Ocidente que demonstra como a arte pode ser uma engenharia de guerra: um cavalo gigante construído em madeira chega na cidade como um presente dos deuses; sua imponência e a arte que o pensou e construiu exercem certa magia de modo que os receptores do ‘presente’ não questionam as intenções dos inimigos que os elegem como merecedores de tal artefato. 

Porém, o que estava invisível na grande estrutura de madeira do Cavalo,  foram as intenções iniciais que de submeter toda cidade de Troia aos domínios gregos, pois, dentro do cavalo se escondia um exército que, uma vez passando a fortaleza da cidade, entrariam em campo pegando todos desprevenidos. Não por acaso, ‘cavalo de tróia’ é também um termo utilizado na computação  para programas maliciosos que se instalam em dispositivos e computadores, sempre disfarçados de algo que parece comum e necessário para todos. Mas, ao final, o que se instala é um facilitador de espionagem que também poderá causar danos aos arquivos de um sistema computacional.

É possível uma Inteligência Artificial Responsável? 

Assim, embora não queira simplificar dizendo que a IA traz escondidas muitas intenções que são de controle, vigilância e adestramento dos sentidos cognitivos em larga escala, os sistemas de IA de fato favorecem à vigilância, manipulação e controle. 

Pelos problemas que traz, ainda se discute como tornar estes sistemas responsáveis quando há danos. 

Em geral se falam dos danos diretos causados pela IA quando ela fortalece o racismo, a misoginia, extremismo e todo tipo de preconceito.  Por exemplo, as câmeras de segurança identificam pessoas de peles escuras com potencial de maior risco para cometer crimes ou reincidir. Ou reforçam preconceitos contra as mulheres e pessoas de baixa renda quando o caso é aplicar para uma vaga do trabalho ou solicitar um empréstimo. 

Além destes riscos diretos, há também os problemas ambientais com o grande consumo de energia, água e a dependência na extração de minérios que é problemática para os recursos naturais e para a vida em geral, quando há contaminação da água e impacto na saúde das pessoas, tanto as que vivem perto dos locais de contaminação, quanto às que estão nas cidades.

Não há ainda uma regulamentação sólida no que diz respeito à IA, mas uma maneira de buscar contornar os problemas de uso excessivo de recursos poderá ser tendo estruturas compartilhadas. Por exemplo, com grandes centros de inteligência artificial para tratar de casos específicos para interação com especialistas, na saúde e outras áreas de atuação e conhecimento. Assim como, para usuários gerais, o uso da IA poderia estar acessível em bibliotecas públicas com estruturas computacionais mais robustas, tornando assim menos necessário que cada um busque se equipar para acionar estes recursos de IA. 

Portanto uma readequação das necessidades, de modo que é diferente de pensar que as bilhões de pessoas conectadas no mundo precisam cada uma, individualmente, ter dispositivos dotados de vários aplicativos, incluindo os de IA.

Esta seria uma proposição de um futuro ideal onde as pessoas possam quebrar o individualismo do imaginário branco, burguês, para colocar no lugar uma visão de comunidade que compartilha recursos e responsabilidades.

É bom lembrar que a sociedade já compartilha investimentos, pois se o governo brasileiro decide investir bilhões para implementar sistemas de IA eficientes, precisamos discutir que impactos positivos se esperam destes investimentos, quem será mais impactado tanto positiva quanto negativamente, quais são os custos humanos e ambientais, e como se planeja mitigar os possíveis riscos.

A IA Responsável portanto seria ter, não apenas uma regulamentação, como também a garantia de transparência e prestação de contas nos planejamentos de investimentos públicos nestes sistemas. 

Vida Digital

Não é possível ignorar a IA e é preciso ter consciência de que a política hoje acontece dentro dos sistemas computacionais, em uma vida cada vez mais digitalizada. 

Assim, se vamos interagir com estas tecnologias, como de fato já estamos, já que este artigo está sendo escrito em um computador, será enviado através de um endereço eletrônico (e-mail) por uma rede conectada (internet) e, do outro lado as pessoas irão receber ele por outro computador, telefones celulares, até que este conteúdo vá para um sítio de internet (website) e esteja disponível para ser lido por mais pessoas. Vamos então procurar entender qual o custo destas tecnologias e como poderemos diminuir seus impactos negativos, mesmo que façamos uso destes recursos.

A começar, as tecnologias precisam de minérios, e se os custos ambientais e humanos fossem incluídos nos seus produtos finais, eles não estariam acessíveis para as bilhões de pessoas no mundo, como estão agora. Mas não apenas isto, desde a ‘descoberta’ da eletricidade existe uma prática de obsolescência programada que é tornar os produtos menos duráveis e assim a indústria pode vender mais. Desse modo, a obsolescência programada que multiplica o lixo de eletro-eletrônicos é parte de um sistema onde humanos são também descartáveis e, igualmente, não há qualquer preocupação em extrair mais da Terra para aumentar o lixo em favor do lucro de poucos.

Os corpos que sustentam a IA são os mesmos corpos que sustentaram a revolução industrial desde o início: os povos colonizados nas Américas, África e Ásia, somados mesmo a ‘brancos’ pobres que também, em períodos históricos anteriores, haviam sido destituídos de suas culturas locais, tiveram suas crenças perseguidas e, ou tiveram que fugir, ou se adaptar aos comandos dos regimes imperialistas. Assim, hoje, mesmo as pessoas que gozam de privilégios neste sistema de desigualdades têm seu tempo e trabalho explorado para alimentar a IA, como o caso de crianças que vivenciam desde cedo o estresse de ser enganado em supostos pagamentos em plataformas com criptomoedas que na prática não são conforme o prometido.

Quando a interação com as tecnologias influem no que pensamos e sentimos

Se não há proteção mesmo para as crianças que estão dentro de um sistema de privilégios, da cosmologia do homem branco industrial burguês, qual efeito em cadeia de um sistema que se impõe com base no uso de corpos para lucros particulares? 

As revoluções tecnológicas vêm também impulsionando uma degradação moral e psíquica, adoecendo cada vez mais os corpos. Porque na cultura colonialista é cada um por si, o desamparo do povo que é ou se vê branco vêm crescendo e estimulando mais conflitos. E quando ainda precisamos acionar valores humanos essenciais como empatia e respeito à vida, continuam os massacres aos povos originários e todos os grupos vulneráveis e vulnerados pelas desigualdades e injustiças sociais. 

Analisando os movimentos históricos do mundo atual, não podemos ignorar que os movimentos comerciais que hipervalorizam investimentos em tecnologias emergentes vêm acompanhado de maior concentração de renda, aumento das desigualdades, fortalecimento de ideias preconceituosas e estereótipos, aceleração de casos envolvendo sofrimentos psíquicos como depressão e ansiedade.

As populações indígenas que já vêm sofrendo com as tensões coloniais do mundo industrial branco, por séculos, têm problemas como alcoolismo, depressão, ansiedade e suicídios subnotificados, ainda assim, com registros acima das centenas nos últimos anos. Além disso, 60% da população indígena não aldeada (que vive em áreas urbanas) apresenta ao menos um problema crônico de saúde, sendo a depressão um dos mais recorrentes diagnósticos.

Estes são reflexos da compressão do tempo e da vida em bits, os modos acelerados como a computação se impõe, fortalecendo o poder econômico que continua se sustentando em exploração de vidas, mentes e corpos, de modo que os grupos vulnerados estão em maior perigo e em pane sobre perspectivas futuras. 

No caso das populações indígenas, os modos como as ideias do mundo branco se espalham através da IA e todos os recursos que um simples smartphone pode ter, pode também impactar na relação (ou separação) do ser com a natureza, pois os conteúdos de mídias sociais e aqueles espalhados em aplicativos de comunicação como Whatsapp tendem a manipular sentimentos e ideias.

Resistência, Existência, Reconexão com a Natureza

O primeiro contraponto que gostaria de lembrar é o da única guerrilha de resistência ambiental conhecida, e que foi possível em uma pequena ilha na Papua Nova Guiné/ Oceania, um conflito que durou dez anos, de 1988 a 1998, com cerca de vinte mil mortos, quando os detentores de um poder bélico maior decidiram não atuar em direção à um massacre total e as medidas ‘punitivas’ foram de isolamento comercial, como já faziam e fazem com Cuba. 

A “Revolução dos Côcos” demonstrou que é possível  impor as necessidades dos povos e da Terra, enfraquecendo a sede voraz de lucro da indústria. Mas em países da África e no Brasil o problema de colocar limites na mineração vêm de existirem elites políticas e financeiras internas que também lucram com estas práticas. Assim temos disputas e guerras internas maiores, que dificultam a observação correta e ética das demandas de direitos humanos e ambientais. 

Em Bougainville não havia força suficiente de burguesia ou pequena burguesia dividindo o pequeno território desta ilha, que fosse capaz de defender os direitos dos industriais. Assim, a extinta mineradora de cobre que estava poluindo as águas desta ilha, parte do arquipélago das Ilhas de Salomão foi forçada a encerrar suas atividades naquela ilha.

Os povos originários estavam em maioria, e arcaram com todas as consequências para defender os seus direitos e os da Terra. De maneira surpreendentemente criativa, a população sobreviveu com os seus próprios recursos, fazendo do côco não apenas alimento essencial, mas combustível e material de limpeza. Com conhecimentos básicos de engenharia mecânica e eletrônica eles conseguiram fazer automóveis e rádios funcionarem. Um exemplo de resistência que somente foi possível por condições específicas, incluindo a união e respeito à liderança anciã.

Os corpos da IA

Além dos corpos da Terra, as montanhas, as pedras nos rios, a água por dentro do solo, e os que com estes interagem, da matéria bruta até a confecção de um chip eletrônico, as tecnologias emergentes de hoje passam por muitas etapas e processos que envolvem muitos corpos. Do trabalho braçal na extração, ao transporte dos minérios aos locais onde outros corpos estarão a cargo do tratamento destes minérios. 

Das ações repetitivas nas fábricas, boa parte já operada por robôs, que por sua vez vêm a requerer mais extração de matéria bruta, até os trabalhos específicos de montagem e distribuição. Para que telefones celulares ‘inteligentes’ tenham se tornado disponível a um maior número de pessoas, as pessoas trabalham em fábricas chinesas por muitas horas, sem descanso.

E se nos perguntamos, a que custo e para quais resultados, este é um mundo de fantasias que na prática vêm resultando em maior ansiedade, depressão e separação da mente e do corpo, e a separação do corpo sobre o momento presente. Nem mesmo os que mais lucram com estes sistemas conseguem alcançar satisfação e felicidade. É um mundo que corre atrás de um futuro que nunca chega, e enquanto ele não chega, algumas pessoas pagam, mais do que outras, dentro de um sistema movido por perversões, maldades e injustiças.

Para interagir com a IA…

Se a IA pode auxiliar muitos em muitas tarefas, sendo excepcionamente eficiente em casos relacionados à saúde, por exemplo, o que ela é capaz de escrever atende as regras formais que muitos já instruídos nestes sistema de conhecimento desde muito cedo, não dominam inteiramente.\

Porém o fato da IA atender a formalidades da ‘língua culta’ melhor que muitos humanos, não significa que ela esteja provendo informações verdadeiras e sendo criativa, como se pode ser quando narramos em palavras uma experiência vivida, ou mesmo as ideias que temos sobre um assunto. 

O que escrevo agora, com estas palavras, é resultado da minha experiência, de um corpo no mundo por muitas décadas, de mãos que tocaram livros e olhos que já leram não sei quantos milhares de páginas. A escrita criativa não é guiada pelas regras formais, mas pela necessidade existencial de compartilhar este conhecimento para estabelecer diálogos e suscitar reflexões,

Assim, a IA instrumentaliza a língua e a separa da experiência do corpo. Não será trivial pensar no desencantamento que esta excessiva instrumentalização poderá ocasionar.

Todos estes sistemas são muito individualizados, direcionados, então um modo de interagir criativamente é compartilhando perspectivas, ampliando coletivamente os modos de transmitir uma ideia, através de imagens ou palavras. São modos de pensar juntos sobre como lidar com os desafios que estas tecnologias nos apresentam. 

Se começarmos a utilizar a IA acríticamente estaremos multiplicando as regras, formalidades e narrativas que não nos representam inteiramente e, ainda, fortalecendo as fantasias que não precisam ser verdadeiras, justas, e que separam o conhecimento formal do conhecimento vivido nos corpos.

A cultura oral do conhecimento ancestral, da experiência de olhar e viver o mundo, esta sim, podemos narrar com estas palavras organizadas. De preferência em códigos que nunca poderão ser capturados e reduzidos por ‘formalidades’ que apenas representam ‘autoridades’ sobre o que é e o que não é conhecimento.

Por exemplo,

                           eu sonho

                                               com o vento

                                                                      que embala a montanha

                                                                                                                e faz assoviar o eco da voz.

A palavra nasce da imaginação.

*Miniaman Puri/ Elen Nas é pesquisadora pósdoc do Instituto de Estudos Avançados da USP, Doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, Mestre em Design e Cientista Social. Líder estudantil na adolescência nos anos 80, ativista dos movimentos sociais e feministas nos anos 90, viveu alguns períodos no exterior e participou dos movimentos de resistência da Aldeia Maracanã em 2013. Recentemente adere ao movimento de ressurgência Puri, família do seu avô materno, sua tia-avó, e possivelmente também de outros por parte de pai, já que são todos ‘não brancos’ do mesmo território por muitas gerações.

Por: Mniaman Puri (Elen Nas*)

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