Da Promessa à Resistência: O Caminho da Auto-Demarcação na Luta Indígena

Foto Anápuàka Tupinambá Hãhãhãe | Exposição “Memórias Ancestrais Presente”, Museu do Indio – 2024.

Desconexão entre Discurso e Ação

A frase “Demarcação já!” já foi o grito de resistência e urgência na luta pelos direitos territoriais indígenas no Brasil. Contudo, ao longo do tempo, essa expressão se transformou em um símbolo esvaziado e desiludido, refletindo a distância crescente entre discurso e ação no processo de demarcação de terras indígenas. A criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), embora vista por muitos como uma possível solução, não foi suficiente para reverter a paralisia que continua a afetar as comunidades indígenas e a garantir seus direitos mínimos. Com isso, uma nova estratégia se faz urgente: a auto-demarcação.

O apelo “Demarcação já!” sempre evocou um chamado imediato, uma necessidade urgente de reconhecimento das terras indígenas. No entanto, a realidade tem demonstrado que as promessas de demarcação frequentemente não se concretizam. A criação do Ministério dos Povos Indígenas, em um primeiro momento, gerou expectativas de avanço no processo, mas os resultados continuam aquém das necessidades das comunidades. Longe de ser uma solução definitiva, o Ministério se tornou um campo de disputas internas, políticas públicas ineficazes e uma gestão que ainda não consegue romper com os entraves estruturais que paralisam as demarcações.

Ao invés de promover um movimento de transformação, o slogan se tornou um eco vazio, repetido em discursos de palaques e palcos “ a La Show Time” que pouco avançam nas pautas mais urgentes. As comunidades indígenas de base – que vivem as realidades mais duras da luta territorial, enfrentando invasões, violência e precariedade – já não veem nesse grito de guerra a força que ele um dia teve.

Manipulação Política

“Demarcação já!” passou a ser utilizado de forma estratégica em cenários eleitorais e políticos, principalmente por aqueles que, em última instância, não têm compromisso e até abusaram do uso real da pauta dos direitos indígenas. Esse apelo se tornou um instrumento emocional usado para desviar a atenção das questões mais profundas e complexas, como as políticas anti-indígenas que ganham força no dia a dia em diversas esferas do empresariado brasileiro e mundial, governo e do Congresso Nacional.

O uso da frase em tais contextos é uma forma de “falácia do espantalho”, na qual a luta indígena é simplificada e tratada como um pedido urgente, mas desconectado da realidade política e das dificuldades estruturais que envolvem o processo de demarcação de terras. Essa tática distorce a questão e desvia o foco das verdadeiras resistências e desafios enfrentados pelos povos indígenas.

Falta de Compromisso Real

Com o avanço de um governo que inicialmente prometia ser mais sensível às questões indígenas, surgiu uma nova onda de esperança. No entanto, a frustração tomou conta das comunidades indígenas à medida que as promessas não se materializavam. O governo atual enfrenta pressões internas e externas que dificultam o progresso das regularizações e demarcações, sendo a falta de um compromisso real uma das maiores críticas à gestão política do Ministério dos Povos Indígenas.

O resultado é uma promessa de demarcação que se tornou, para muitos apenas marketing, uma falácia. O “Demarcação já!” se transformou, aos poucos, em um símbolo de um governo que, ao invés de se comprometer de fato com a causa indígena, usou a questão de forma midiática, como parte de estratégias eleitorais, meio ambiente (prol Amazônia da sustentabilidade a destruição com a extração do petróleo amazônico) e nas campanhas presidenciais futuras 2026. Para muitos, a frase passou a soar como uma ironia: “Demarcação? Já era!” È Só ouvir as bases indígenas, além das organizações indigenistas, “indigeNadas” e indígenas de letrinhas.

Conflitos Legais e Burocráticos

A maior barreira para a efetiva demarcação das terras indígenas no Brasil não reside apenas em uma falta de vontade política, mas também em um labirinto jurídico e burocrático complexo. As centenas de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) e Projetos de Lei (PLs) anti-indígenas em tramitação no Congresso Nacional são apenas parte de um sistema que se revela cada vez mais hostil.

Esses obstáculos legais tornam a frase “Demarcação já!” uma simplificação excessiva e desconectada da complexidade do processo. As comunidades enfrentam anos de espera e incerteza enquanto tentam garantir seus direitos à terra, sem que as promessas de mudança se traduzam em ações concretas.

O Enfraquecimento de um Símbolo

O grito de resistência “Demarcação já!”, que outrora simbolizava uma necessidade urgente, hoje se encontra diluído. Quando as promessas não se traduzem em realidades palpáveis, o que era um poderoso apelo por justiça se transforma em um eco distante, usado muitas vezes para fins políticos e eleitoreiros. As comunidades indígenas, que continuam a enfrentar a violência, as invasões e a destruição de seus territórios, já não encontram nas palavras dos governantes a força que um dia tiveram.

O Ministério dos Povos Indígenas, apesar de seu simbolismo, não tem conseguido quebrar a paralisia do processo de demarcação como foi prometido. A falta de uma ação concreta se reflete na insatisfação das lideranças indígenas das bases e organização indígenas, que, cada vez mais, se veem isoladas em suas demandas.

A Auto-Demarcação como Caminho

Diante de uma realidade em que o Estado se mostra incapaz ou, em muitos casos, relutante em garantir os direitos territoriais indígenas, surge um novo horizonte: a auto-demarcação. Para muitos, este é o caminho necessário para preservar a autonomia indígena e proteger as terras que, historicamente, lhes pertencem. Não é mais possível esperar por autorizações que nunca chegam.

A auto-demarcação representa, antes de tudo, um direito inalienável vindo do micro para o macro, uma afirmação da identidade e da resistência indígena. Ela surge como uma necessidade urgente e fundamental para garantir a sobrevivência das culturas indígenas e a proteção de suas terras. Não é uma permissão que se pede, mas um direito que se exige o cumpra-se.

Terras livres, vozes amplificadas e fortes: a luta indígena não depende da permissão dos não indígenas, nem do reconhecimento de um sistema que historicamente os marginalizou. Apenas através da auto-organização, da luta coletiva e da resistência organizada será possível garantir que as terras indígenas permaneçam em mãos de quem de fato tem o direito sobre elas.

No Brasil e no mundo, a luta pela demarcação é, hoje, uma luta pela sobrevivência e pela preservação da diversidade cultural, e ela não pode ser aguardada. É tempo de ação, de retomadas, de resistência e de afirmação dos direitos. Que a auto-demarcação seja o caminho para a construção de um futuro onde nós povos indígenas, por fim, possam viver em paz, em nossos territórios, sem precisar pedir permissão para isso.

Foto: Rodrigo Muniz Tupinambá Hãhãhãe | T.I. Caramuru Catarina Paraguaçu – Pau Brasil Bahia.

A ideia, conceito ou prática de auto-demarcação indígena e as retomadas de terras das décadas de 1980 e 1990, embora estejam relacionadas com o tema da terra e da autodeterminação, são conceitos com nuances diferentes.

Auto-demarcação Indígena

A auto-demarcação indígena é um conceito que surge da necessidade dos povos indígenas de se afirmarem como sujeitos de direitos em relação ao seu território. Em termos gerais, a auto-demarcação pode ser entendida como o ato de os próprios povos indígenas identificarem, delimitarem e afirmarem suas terras tradicionais de forma independente, sem a intermediação ou validação do Estado ou de qualquer outra entidade externa como é a tal frase de “Demarcação Já”. Esse movimento se baseia no princípio da autonomia e na reivindicação de soberania sobre seus territórios, de acordo com suas próprias leis e a Constituição Federal de 1988, o artigo  231 e 232, sistemas de gestão e ancestralidades.

Artigo 231 da Constituição Federal de 1988:

“Art. 231. São reconhecidos aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são indisponíveis e o usufruto das riquezas nelas encontradas é exclusivo dos povos indígenas, salvo no caso de interesse nacional, quando a União, após consulta às comunidades afetadas, poderá utilizar os recursos naturais.

§ 2º As terras indígenas são inalienáveis e não podem ser objeto de venda, compra ou qualquer forma de negociação que envolva sua propriedade.

§ 3º É garantido aos índios o usufruto exclusivo das riquezas de suas terras, especialmente das que sejam resultantes de atividade de mineração, exploração de recursos naturais e outras fontes.

§ 4º O respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas será assegurado, e a União promoverá a proteção das populações indígenas.

§ 5º A União, no âmbito de sua atuação, assegurará aos povos indígenas o acesso aos serviços de saúde, educação, saneamento básico e outras necessidades essenciais, com respeito às suas tradições culturais.”

Expliquemos:

O artigo 231 é um marco fundamental para os direitos indígenas no Brasil, reconhecendo os direitos originários das comunidades sobre as terras que ocupam tradicionalmente. Ele garante que as terras indígenas são indisponíveis (não podem ser vendidas ou transferidas) e inalienáveis (não podem ser negociadas ou trocadas), reforçando a proteção do território indígena.

Outro ponto importante é que a Constituição exige que o Estado brasileiro tome as medidas necessárias para demarcar e proteger essas terras, e também que as comunidades indígenas tenham direito exclusivo sobre os recursos naturais de suas terras, como minérios, madeira, e outros recursos, salvo em casos de interesse nacional. No entanto, em tais situações, a União deve garantir a consulta prévia às comunidades indígenas afetadas.

Além disso, o artigo também assegura o respeito às culturas, línguas, crenças e tradições indígenas, promovendo políticas públicas que respeitem a autonomia dos povos indígenas em aspectos culturais e sociais, como educação e saúde, adaptadas às suas especificidades.

Esse reconhecimento é fundamental para que os povos indígenas possam exercer plenamente seus direitos territoriais e culturais, buscando preservar suas tradições e modos de vida, ao mesmo tempo em que têm acesso a serviços e políticas públicas necessárias para o seu bem-estar.

O artigo 232 da Constituição Federal de 1988 complementa o artigo 231, reforçando os direitos dos povos indígenas no Brasil, especialmente no que se refere à defesa de seus direitos e representação legal. O texto do artigo 232 estabelece que os povos indígenas podem ser representados na justiça por suas próprias lideranças, ou por entidades representativas, como organizações indígenas e ONGs, quando necessário.

Artigo 232 da Constituição Federal de 1988:

“Art. 232. Os índios têm o direito de serem tratados de acordo com seus próprios valores, crenças e costumes, e de serem assistidos por suas próprias entidades representativas, podendo estas, inclusive, recorrer ao Poder Judiciário para a defesa de seus direitos.”

Expliquemos novamente:

O artigo 232 reflete o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas para que eles possam defender seus próprios direitos e ser representados por suas entidades nas instâncias legais. Ele assegura que, caso necessário, organizações indígenas ou outras entidades representativas podem atuar em nome das comunidades indígenas, inclusive recorrendo ao Judiciário para proteger seus direitos.

Este artigo é um instrumento importante para que os povos indígenas possam acessar a justiça e defender suas terras, cultura, direitos sociais e outros interesses, de acordo com suas próprias estruturas organizativas e líderes. Ele também garante que, caso as comunidades indígenas não possam defender seus direitos diretamente, as entidades representativas tenham legitimidade para fazê-lo.

Portanto, o artigo 232 reforça a ideia de que os povos indígenas têm o direito de autodefender suas terras e seus direitos culturais, sendo assistidos por representantes legais que podem interagir com o sistema jurídico do país em defesa de seus interesses.

Retomadas de Terras (décadas de 1980-1990):

As retomadas de terras realizadas pelos povos indígenas nas décadas de 1980 e 1990 ocorreram em um contexto de mobilização intensificada, especialmente após a Constituição de 1988, que reconheceu o direito à demarcação das terras indígenas. Entendo que os planejamento foram feitos durante anos anos 70. Nesse período, as retomadas eram, muitas vezes, ações diretas em que as comunidades ocupavam terras que eram consideradas suas por direito tradicional, mas que haviam sido apropriadas por fazendeiros, empresas ou pelo Estado. Essas ocupações visavam pressionar o governo a cumprir o direito de demarcação das terras indígenas, muitas vezes em resposta à invasão e exploração ilegal de suas terras por terceiros.

As retomadas de terras dos anos 80 e 90  e parte dos anos 2000 foram, em grande parte, confrontos diretos com a legislação e com os interesses da sociedade não indígena, sendo em muitos casos acompanhadas de conflitos e violências, tanto por parte de grileiros e latifundiários, quanto da repressão policial e militar. Esse movimento também foi crucial para a visibilização das questões indígenas e para a construção de uma agenda política que exigia o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas.

Comparação:

Embora a auto-demarcação e as retomadas de terras compartilhem a luta pela terra e autonomia territorial, existem algumas diferenças importantes entre elas:

  • Abordagem do processo: Na auto-demarcação, a iniciativa partem diretamente dos povos indígenas, que buscam tomar posse e afirmar o direito sobre seus territórios. Já as retomadas eram muitas vezes uma resposta à falta de ação do Estado ou à injustiça da posse de terras, sendo ações mais confrontativas com os invasores.
  • Instrumentos legais: A auto-demarcação surge como uma tentativa de afirmar direitos indígenas de forma autônoma, geralmente em contextos onde a demarcação oficial do Estado não acontece de maneira ágil ou justa. As retomadas de terras, embora também com esse objetivo, estavam mais focadas em pressionar o Estado para que reconhecesse a posse e os direitos indígenas.
  • Tática de resistência: A auto-demarcação pode ser vista como um passo mais avançado e consolidado de resistência e afirmação indígena, onde o controle e a gestão territorial são mais diretos. Já as retomadas de terras foram, em sua maioria, uma ação direta de confrontamentos sangrento, massacre, com um forte componente de pressão política e social.

Portanto, enquanto as retomadas de terras estavam muito relacionadas ao conflito e à luta pela visibilidade do direito à terra, a auto-demarcação reflete uma postura de afirmação territorial e autonomia indígena no contexto de um Estado que muitas vezes falha em garantir direitos ou agir de forma legítima com relação às terras indígenas. Ambas as ações têm, no fundo, o mesmo objetivo maior, que é a reconquista e garantia do direito territorial dos povos indígenas, mas as formas de ação e os momentos históricos em que surgem são distintos. Auto Demarcação Já

Por:  Anápuàka M. Tupinambá Hãhãhãe | @anapuakatupinamba

Respostas de 2

  1. Para variar um belo texto-tese que joga um líquido ardente sobre uma ferida jamais cicatrizada. Mas ler esse texto é ainda um bálsamo de resistência. Parabéns amigo Anapuaka.

  2. Parabéns Anápuàka por seu style, por sempre manter a vive ancestral em alta quando ousa mandar a letra seja interrompendo transmissões politicas de quinta categoria no planalto,raqueando por direito constituinte a voz e a vez de ministros de stj et al. Realmente, autodemarcação já é não só mais sensato como mais honroso e limpa a mancha de sangue com cocô que o apatrido poder da quarta midia tem ainda por liberdade concedida nos ministerios da comunicaçao,afinal tv é conceçao paga com nossos impostos e importada é pior ainda,sobretudo quando o silicio tá em alta no mercado negro da imigraçao da força bruta feminina que compoe notesbooks.é sempre maneirao te ler ver e ouvir com toda a elegancia de teus ancetres.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Pular para o conteúdo