Eliane Potiguara: a voz da comunicadora que ecoa da floresta à cidade

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Imagine uma menina de seis anos, com olhos brilhantes e uma caneta na mão, se transformando em “um pombo-correio de histórias”, carregando as vozes de sua avó, tias e de um “pequeno gueto indígena” pelas ruas do Rio de Janeiro. Essa menina é Eliane Potiguara, uma das vozes mais potentes da Literatura Indígena no Brasil, com uma trajetória que transcende as obras literárias e se entrelaça com a Comunicação Indígena, na luta pela visibilidade e pelos direitos das mulheres indígenas. Antes da renomada escritora e poetisa, Eliane foi, e sempre será, uma comunicadora incansável, cuja palavra, como disse o pajé Aniceto Xavante – e Graça Graúna foi testemunha – “ é tão sagrada quanto a terra”.

Recentemente, foi uma das homenageadas da Ordem ao Mérito Cultural (OMC), com o grau “Cavaleiro” pelo Governo Federal, por sua obra literária, uma riqueza para a cultura brasileira.

Raízes e resistência

Nascida em uma família Potiguara forçada a migrar da Paraíba para Pernambuco e, depois, para o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, Eliane enfrentou desde cedo os ecos da violência colonial. Alfabetizada em casa, se tornou ponte entre sua comunidade e o mundo, escrevendo cartas que carregavam não apenas palavras, mas memórias, dores e esperanças. Sua avó, Maria de Lourdes, curandeira analfabeta e trabalhadora incansável nas feiras cariocas, foi quem plantou a semente da escrita, pedindo que Eliane redigisse histórias e mensagens para parentes distantes. Dessas cartas, brotaram narrativas que mais tarde floresceriam em livros.

No tempo da faculdade, quando Eliane findava os estudos, retomou os laços com parentes de seu povo em Pernambuco, por indicações de seus familiares. Queria buscar as histórias das suas origens, principalmente sobre o assassinato de seu avô, que desapareceu naquelas terras. Foi por vivenciar essa diáspora indígena que ao regressar à aldeia, as articulações políticas e comunicacionais iniciaram. Fundariam assim, em 1986, a Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas, grupo que elaborou o primeiro informativo feito por mulheres indígenas:

[…] Nasceu de um grupo de mulheres, né, que tinha problemas sérios, porque havia muita violência doméstica, havia uma situação do alcoolismo muito grande, havia arrendamentos de terra havia várias coisas irregulares na comunidade que eram realizadas por gente que vinha implantar novas ideias, novas ideologias, novos hábitos novos costumes, nova forma de ganhar dinheiro e uma forma de ganhar dinheiro ilícita, né? […] (Potiguara, 2022, p. 146).

A revolução do GRUMIN

O GRUMIN não foi apenas um marco, foi uma revolução. Liderado majoritariamente por mulheres como Anaí, Belarmina, Djalma, Fátima, Marina, Rosineide Pio, Tonhô e Zenilda Sateré-Mawé, o grupo criou o primeiro jornal indígena feito por mulheres, o Jornal do Grumin, e a cartilha A Terra É a Mãe do Índio, aprovados pela UNESCO. Esses materiais, distribuídos em comunidades Potiguara e além, desafiavam a invisibilidade das mulheres indígenas. Eliane, com sua escrita afiada, enfrentou preconceitos até mesmo dentro de espaços indígenas, como quando um líder a mandou “ir para a cozinha” durante uma assembleia. Mas ela não se calou. Pelo contrário, sua voz ganhou força, ecoando em encontros como o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, no final dos anos 1980.

Círculos de Ancestralidade e Etnomídia

A Rede GRUMIN, com seus “Círculos de Ancestralidade”, se tornou um espaço de resistência e memória, onde a oralidade e a escrita se uniam para fortalecer a luta por direitos, cultura e território. Em 1993, o Informativo GRUMIN ampliou esse legado, registrando ideias para um movimento indígena que valorizasse a ancestralidade feminina e matriarcal, enquanto reivindicava acesso à tecnologia e à educação. Nessa época, o Conselho do GRUMIN já contava com integrantes nos estados da Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Paraná, Pará, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro e fazia parte do Conselho Internacional dos Tratados Indígenas nas Nações Unidas. Também foi uma época em que Eliane se tornou uma das primeiras blogueiras indígenas nos anos 1990, abrindo espaço para a presença do comunicador indígena em redes digitais.

A produção etnomidiática surge da própria cultura e tradição, das suas reivindicações diárias e históricas e, ao mesmo tempo, de como o cidadão indígena percebe, utiliza e se apropria da comunicação dentro dos seus contextos culturais e comunitários, como reforça sempre Anàpuáka Muniz Tupinambá quando fala sobre a Comunicação Indígena. Era assim que usavam o meio da palavra para contra-argumentar o poder e a opressão. Ainda em nossos dias, é sobre aprender com aqueles que vieram antes, para continuar no presente e na construção de um futuro, como afirma Eliane Potiguara:

“A etnomídia, o jornal, a revista, os materiais didáticos, a literatura indígena, por exemplo, os livros que são publicados, isso tudo tá fazendo uma grande esfera de força e de luz, de conscientização para a sociedade, né? Para que a própria sociedade tenha empatia com a questão indígena. Por isso que a gente hoje conseguiu eleger esse mandato do cocar. Conseguiu porque a gente vem pressionando, né, com a etnomídia nesses anos todos. Cada um de vocês, trabalhando nas suas áreas, nas articulações, a gente trazendo a informação. E com a internet foi assim, um sucesso! A luta que segue, tá? E que os jovens ouçam as nossas faísquinhas que a gente vai jogando por aí, através dos livros, através das rádios, da literatura, da pintura corporal, da pintura no seu contexto maior, né?”, afirma.

Um legado vivo de Comunicação Indígena

Eliane Potiguara é mais do que uma escritora; é uma guardiã de histórias, uma pioneira que transformou a dor da diáspora em resistência comunicacional. Sua trajetória nos ensina que a palavra indígena, especialmente a da mulher, é um ato de sobrevivência e transformação. Como ela mesma diz, a luta segue, e as faíscas que ela lança – em livros, jornais, blogs e rodas de prosa – continuam a inspirar gerações. Então, que tal pegar um de seus livros ou o Jornal do Grumin, na Hemeroteca Armazém Memória e se deixar tocar por essa voz que une floresta, cidade e ancestralidade? Melhor do que isso, Eliane conta que o GRUMIN costumava dizer: “Mulheres indígenas, criem suas organizações dentro das suas próprias casas“.

Leia mais:

Graúna. Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

Potiguara, Eliane. Metade Cara, metade máscara. Rio de Janeiro, RJ – 3. ed. Grumim, 2018.

CARNEIRO, R. G. Etnomultimídia Indígena: configurações de vozes de uma demarcação etnomulticomunicacional cidadã e descolonizadora no Brasil. 2023 Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) Universidade do Vale do Rio do Sinos, São Leopoldo, 2023. Ebook gratuito em:< https://www.pimentacultural.com/livro/etnomultimidia-indigena/>. Acesso em: 26.mai.25

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