Terra à vi$ta: como destruir uma aldeia indígena (e como protegê-la!)

Por Raquel Gomes Carneiro/ Redação Rádio Yandê

“Danse de sauvages de la mission de St. José”.  Denilson Baniwa (2021).

Perdidos no perdido

Os filhos da terra

Sem barco

Sem arco

Sem lança

Sem onça

Jogados no mundo

Os filhos da terra

Só o silêncio dos deuses

Pelos (des)caminhos

Os versos de Graça Graúna, ofegantes no mormaço, pedem abrigo à porta da maloca de chão de calcário moído, tawá (o barro), gesso com areia e água. Lá dentro, Liana respira bem fundo, prende o ar por longos segundos e desfia a proteção do santo, porque esqueceu como conversar com Tupãna´Y e outros milhares de deuses indígenas na língua matricial. “Não deixe cair em tentação, livrai Senhor, nós, de todo mal”. De repente, o silêncio do cabresto da fé se rompe no facão da palavra do chefe do posto para desculpar a ausência do prefeito e feitor Éldar Nascentes naquela reunião. E emenda a justificativa da falta da secretária municipal responsável.

Ao redor da mesa larga, o tal chefe, seis caciques e lideranças se acomodam. Cadeiras por toda a nova maloca para a participação dos cidadãos da comunidade. O grupo tem a missão de decidir o que fazer com a casa retomada no Parque das Matas, região que pertence ao Território Indígena Ará Porã, invadido, há décadas, pelo governo municipal para a construção de um bairro. Um bairro, dentro de uma área indígena federal, com moradores indígenas e não indígenas. Pasmem: alguns desses não indígenas viraram indígenas de “papel passado”, documento dado por caciques e alguns autodeclarados descendentes de “índios” extintos, segundo eles.

Sentado ao fundo da maloca, o velho Olavo controla os pés ansiosos que levantam poeira. Incrédulos, os ouvidos se negam às ilusões cuspidas da boca do Cacique Faísca. “Começo dizendo que o prefeito quer trabalhar! Ele chamou todos os caciques e disse que quer voltar a dar vida digna para os moradores do Parque das Matas!”. O velho Olavo cerra os olhos para se proteger da luz do sol que bate no espelho retangular e avermelhado pendurado na parede da maloca. Escutar aquilo era como viver o fascínio da imagem do progresso, presenteada pelas mãos sanguinárias do neocolonialismo do século 21.

Olavo. Hoje, o velho. Ontem, a jovem liderança de um povo. O mesmo Olavo, pedreiro, responsável por ajudar a erguer os trilhos do metrô de uma grande metrópole e paredes de muitas escolas. Ele, que pavimentou inícios do Movimento Indígena no Brasil, agora está sem moradia. Sem o kaiambá para o aluguel nos bolsos, vive em uma casa temporária já com ordem de despejo. Humilhado, é um sem teto e sem garantias de direitos.

Enquanto o velho Olavo é encurralado pelo tempo apressado, o governo municipal cresce o olho para ocupar uma casa no Território Indígena Ará Porã, terras já julgadas pelo STF. Alega querer reaver aquele espaço onde outrora foi uma academia de balé, e hoje está abandonado às margens do Rio Domínio do Ouro, que dá nome ao município. A construção, localizada no bairro Parque das Matas, está dentro da terra indígena. A propriedade é do velho Olavo. Quais os motivos do prefeito em querer tanto uma casa velha?

Dona Sônia, a esposa do velho Olavo, aceitou ceder o imóvel com a promessa de um novo lar, pois como artesã e expositora da feira municipal, promovida pela Secretaria de Assistência Social, teme a chantagem e a perda do seu ponto de vendas, cedido pelo município. E era melhor ceder, porque aquele pessoal tem fama de ser vingativo. Ainda assim, ela carrega a certeza de uma nova moradia.

Chinelas gastas do velho Olavo, por mais de quatro vezes, atrás de um dedo de prosa com o prefeito Éldar. O homem do Executivo tem um grande teto e um patrimônio que o coloca como o terceiro sujeito mais rico do estado de Taitara. Mas, as chinelas foram batidas em vão. O mesmo velho Olavo, que por muitos anos não pregou os olhos em noites históricas de retomadas na Terra Indígena Ara Porã, agora não consegue descansar sonhos na casa que foi garantida em promessas pelo prefeito.

Então, promete e não cumpre, certo? Então, não quer me ajudar. Mas na hora de eu dar o meu voto para botar a pessoa lá em cima, aí soube me procurar. Eu dei o voto com todo o carinho, com todo prazer, né? Tá lá em cima! Mas cadê que ajuda?”, ergueu a voz o velho Olavo no meio da reunião.

Em seguida, mais vozes se emaranham em pequenas discussões entre os próprios indígenas que, indignados com a falsa promessa, assumiram um movimento de retomada da casa abandonada pelo município, com a intenção de pressionar um novo lar para o velho Olavo. Além disso, já que a construção pertence ao território da comunidade e essa não foi consultada, se negam a entregar o local de mãos beijadas para uma administração pública corrupta. Afinal, o interesse do governo municipal nunca foi reabrir a academia e formar bailarinos numa comunidade carente, se não dominar e possuir o solo rico e fértil para negócios em mineração, através da Associação Nacional de Produtores e Empreendedores Rurais (ANPER). Quem apoia a entidade, já percebeu o naipe da falcatrua: o presidente foi preso hoje na CPI do INSS por surrupiar a aposentadoria dos brasileiros!

Ali, sentado, continua o velho Olavo sem casa e a comunidade, que também reivindica um posto digno de saúde. Não basta os moradores afirmarem e provarem sua existência sobre o próprio território, assegurado pela Constituição. É preciso esperar a vinda de uns homens de gravata, estudiosos da FUNAIA de Brasília, para fazerem o levantamento: as casas do Parque das Matas que foram construídas e estiverem vazias, os indígenas podem entrar. As que estiverem com moradores, esses não podem ser expulsos. Mas, quem quer tirá-los dali? “Por que as lideranças também não brigam pelo nosso posto de saúde? A casa onde hoje está a Secretaria Especial de Saúde Indígena está caindo aos pedaços! A equipe trabalha em uma sujeira tal qual chiqueiro!”, se exaltou Dona Liana, recordando o cheiro das paredes mofadas da casa adoecida.

Quem são os índios que não querem o progresso? É preciso fazer uma ouvidoria para saber quem é quem! O prefeito não quer tomar Parque das Matas! A FUNAIA pagou essas terras para todo mundo ficar morando lá. Então, é preciso ter melhorias!”, insistia Cacique Faísca, que ainda chama os parentes de “índio”.

No outro canto da maloca, Maria de Manoel, agoniada, levanta a mão e pede a palavra. “Não entendo, como é possível tratar de assuntos territoriais, sem falar primeiro com as lideranças. O prefeito vem depois. Aí, é preciso acatar o voto da maioria da comunidade, em consenso. Por fim, as representatividades políticas da comunidade e lideranças tradicionais precisam estar alinhadas com o pensamento coletivo”, ressaltou a matriarca liderança indígena, que foi interrompida pelo chefe do posto, um senhor indígena, cabo eleitoral lambe-botas do atual governo municipal.

O prefeito foi escolhido por maioria, então cabe a nós, ajudar ele a trabalhar. Ele tem uma base forte para governar e busca alianças para fazer um bom trabalho! Ele tem um plano de governo para executar dentro da Terra Indígena Ara Porã. Ele quer reformar o posto de saúde, fazer pavimentação, melhoria de casas, essas coisas! Ele tem plena consciência que aqui é território indígena. Então, trabalhou aliado às pessoas que o apoiaram aqui dentro”. Quem apoiou a eleição do terceiro homem mais rico de um estado, acha mesmo que é um tipo que se preocupará com a saúde, educação, moradia de um território indígena?

Do alto de seu gabinete, o prefeito exclamava “Terra à vi$ta”, ao mostrar para os secretários, seus futuros planos para Parque das Matas, semanas antes da reunião na maloca.

Afoito para agarrar a palavra e demonstrar fidelidade cega àquela gestão municipal, Cacique Faísca fez questão de reproduzir o que jurou ter escutado do chefe do Executivo: “Olhe! Minha gente, o prefeito Éldar me disse: ‘eu quero ajudar, quero ser prefeito da cidade toda, meu trabalho é sincero e transparente. Quero que todos os caciques trabalhem juntos’. Então, dizer que os caciques estão ameaçando o velho Olavo, os moradores e que o prefeito também ameaça, isso não procede”, disse o cacique em tom ingênuo.

Mas, afinal, por que os próprios cidadãos indígenas, moradores do Parque da Matas, estavam discutindo entre si? Território indígena não se debate, não se barganha, não se compra, nem se vende, segundo a Carta Magna. Seja município, prefeitura, missionário ou Papa: ninguém tem o poder de negociar dentro de território indígena, se não a própria comunidade em consenso. Da mesma forma, o bem-viver dos seus mais velhos, conforme a tradição e cultura do povo, deve ser assegurado pela comunidade, como lembrou Dona Liana.

Sou mãe, sou irmã, sou filha desse território. O velho Olavo não foi usado. Ele estava sem casa e gostaria que os caciques se reunissem para conseguir essa casa para ele. O erro foi o prefeito não se sentar junto com os caciques e com o velho Olavo para discutir o problema dele. E como um mais velho, nós temos que cuidar dele. Ele lutou muito dentro da nossa terra e merece esse cuidado. Isso é caso nosso, problema nosso. Primeiro, nós deveríamos encontrar uma solução entre nós e depois, levar ao prefeito”, destacou Liana.

Ao ouvir as reivindicações, Cacique Faísca sorria com o canto da boca, debochado, como quem faz pouco caso por deter “a verdade”. Onde aquela gente estava com a cabeça? Todo mundo quer um bairro melhor, ruas calçadas, saneamento, infraestrutura, lazer, desenvolvimento e progresso. “Vamos lutar para isso no preço que for! Ninguém aqui tá fazendo política, e nem se vendeu, visse? Querer avanço não é um problema! Agora, o velho Olavo tá complicando e vem essa bobagem aí, de retomada!”, gritou Faísca, ecoando a voz na maloca.

Dona Firmina, conhecida por ser uma senhora reservada, mas com a flecha da palavra na ponta da língua, não mandou recado. “FAÍSCA, você chegou na aldeia faz pouco tempo e você já está desamarrando coisas! Você é indígena, mas aqui chegou ontem! Respeite as lideranças, os caciques, os mais velhos, porque não estamos na baderna e não vamos colocar território indígena em política, ouviu bem?”.

Respirando fundo, Firmina continuou, colocando Faísca em seu devido lugar.

Cresci nessa aldeia e a manipulação política é grande! Você mesmo me chamou para conversar lá na cabeceira da ponte, dizendo que ia me dar uma ideia, que temos que retomar espaços dentro do Parque das Matas. Mas, como retomar se já são espaços de indígenas? Alguém aqui entrou em território de prefeito? Não, a casa dele é em bairro nobre de Domínio do Ouro! A gente não está aqui para brigar indígena com indígena! E aqui somos livres para votar em quem a gente quiser! Não temos que andar no cabresto, não! O velho Olavo não quis o espaço, mas nós o retomamos pras nossas outras lutas, pra todos nós! Se você quer ser um cacique de respeito, comece a somar e fazer coisas que agradem a todos. Esse território é do meu neto, é do meu bisneto, é da minha quarta e quinta geração, ouviu? Ninguém tem coragem de falar na reunião e aí, vem para grupos de whatsapp manipular as pessoas! Respeita as pessoas, rapaz! Essa luta territorial ainda não acabou!”.

A poeira, que levantava dos pés ansiosos do velho Olavo, se assenta. O sol, refletido no espelho pendurado na parede da maloca, vai se pondo. O dia está indo dormir e o tal futuro vai ficando logo ali. E se lá, adiante, o cidadão indígena não aprender a lutar, não terá onde morar, plantar e fazer nascer água para beber. Continuará na encantaria de um novo espelho digital que reluz falsos progressos? Comunidades em que todos os seus moradores não se unem e somam, juntos, estão fadadas a uma eterna briga interna que eclode do chão da aldeia. Enquanto isso, a miséria da fome se espalha pelas famílias, estupros, mortes e todos os tipos de violência aumentam. E se o indígena ficar nessa moda de ignorância com o próprio indígena, passando por cima do próprio indígena, fica difícil.

*****

Terra à vi$ta é uma crônica denúncia “quase” ficcional. Aborda a vida cotidiana na terra indígena, de modo bem previsível: primeiro, eles prometem o conserto do telhado, depois cooptam quem tem voz e semeiam desconfiança. Quando a aldeia já está dividida, entram e se apossam do território físico, cultural e psíquico dos cidadãos indígenas, assim como quem troca um espelho por um terreno, um ônibus para futebol, um serviço de trator, ou cargos no governo municipal, estadual, federal e em organizações privadas. 

Para desmontar esse roteiro da vida como ela é, se faz necessária a ação fortalecedora da comunidade indígena como um único corpo: decidir primeiro entre si, revigorar processos internos de escolha e transparência, proteger e escutar os mais velhos, mapear e reunir provas da posse (documentos, histórias e testemunhos), e transformar cada promessa em compromisso registrado e público.

Paralelamente, é necessário tecer redes externas de proteção, apoio jurídico, articulação com outras comunidades, universidades, ONGs de direitos humanos e mídias independentes de fato, para criar barreiras administrativas e dar visibilidade às violências, tornando impossível a manobra do invasor. Se tentarem criminalizar a luta, devemos documentar, denunciar e levar os fatos às instâncias competentes.

Se oferecerem favores, exija auditoria e participação coletiva! Se houver divisão, invista em formação educacional, política e social, em mediação comunitária! Defender a terra é, portanto, uma prática diária: união nas decisões, clareza nos atos, solidariedade nas redes e pressão constante nos gabinetes e tribunais. Porque só assim o espelho do “progresso” perde o brilho e a aldeia permanece inteira. O Ser apolítico é uma cômoda maneira de ser cúmplice!

Se a terra é dividida, o povo se perde. Se o povo se une, a terra floresce. O velho Olavo não pede caridade: pede dignidade. O que está em jogo não é uma casa, mas o futuro de todos nós”. 

Dona Firmina
(personagem real para uma ficção com verdades)

Respostas de 3

  1. Um resumo da dinâmica nos territórios. Caciques que deixam de servir ao povo para se tornarem donos deles. Um suicídio coletivo

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