
“A pesquisa sem protagonismo indígena continua sendo colonização em outro formato.”
Começamos…
A história da pesquisa acadêmica sobre povos indígenas é marcada por uma contradição profunda: ao mesmo tempo em que nos “estuda”, nos silencia. Nossos corpos, territórios e saberes foram transformados em objetos de observação, catalogação e interpretação, sem que nossas vozes fossem reconhecidas como parte legítima do processo científico.
Como afirmei em um seminário internacional sobre Métodos de Pesquisa Indígena: “A pessoa indígena permanece em seu espaço designado, ainda como informante, como objeto.”
Hoje, essa realidade precisa ser radicalmente repensada. Não basta apenas incluir indígenas em projetos preexistentes; é preciso refundar as bases da pesquisa para que possamos atuar como sujeitos ativos da produção de conhecimento, conduzindo nossas próprias investigações e estabelecendo parcerias equitativas com a academia e a sociedade.
O que esperar
Devemos esperar uma mudança ética e estrutural que vá além da inclusão simbólica. Entre os pontos centrais:
- Respeito aos protocolos culturais – O tempo da comunidade não é o mesmo da burocracia acadêmica. Pesquisar em territórios indígenas exige reconhecer rituais, ciclos da natureza e formas próprias de decisão coletiva.
- Exemplo: Entre os povos Māori, na Nova Zelândia, qualquer pesquisa deve seguir os princípios de Kaupapa Māori Research, que priorizam os interesses da comunidade, sua espiritualidade e protocolos tradicionais.
- Exemplo: Entre os povos Māori, na Nova Zelândia, qualquer pesquisa deve seguir os princípios de Kaupapa Māori Research, que priorizam os interesses da comunidade, sua espiritualidade e protocolos tradicionais.
- Retorno real para a comunidade – Não se trata de extrair dados, mas de gerar impacto positivo.
- Exemplo: No Alto Xingu, projetos conduzidos por associações indígenas em parceria com universidades brasileiras têm gerado resultados práticos, como formação de jovens cineastas indígenas (caso da Associação Kuikuro), que produzem seus próprios registros e narrativas.
- Exemplo: No Alto Xingu, projetos conduzidos por associações indígenas em parceria com universidades brasileiras têm gerado resultados práticos, como formação de jovens cineastas indígenas (caso da Associação Kuikuro), que produzem seus próprios registros e narrativas.
- Reconhecimento epistêmico – Nossos saberes não são “complementos” ao conhecimento ocidental, mas sistemas válidos por si mesmos.
- Exemplo: No Canadá, o conceito de Two-Eyed Seeing, criado por anciãos Mi’kmaq, integra a visão científica ocidental com a sabedoria indígena, sem hierarquizá-las, mas colocando ambas em diálogo.
- Exemplo: No Canadá, o conceito de Two-Eyed Seeing, criado por anciãos Mi’kmaq, integra a visão científica ocidental com a sabedoria indígena, sem hierarquizá-las, mas colocando ambas em diálogo.
O que rejeitar
Não devemos esperar que a mudança venha apenas da boa vontade das universidades, dos governos ou das agências de fomento, pois não virá. Se esperarmos que essa mudança venha espontaneamente, talvez ela só aconteça em outra era, e ainda assim sem garantias de que sejamos reconhecidos como protagonistas. A história mostra que, quando não há pressão, autonomia e protagonismo indígena, a tendência é que a pesquisa continue sendo extrativa.
- Exemplo negativo: Diversos estudos biomédicos realizados na Amazônia durante o século XX coletaram sangue, cabelo e informações genéticas de povos indígenas sem consentimento livre e informado, e até hoje esses dados circulam em laboratórios brasileiros e estrangeiros sem controle comunitário.
Portanto, não devemos esperar neutralidade. Toda pesquisa é política. Manter indígenas apenas como fontes de dados é perpetuar um sistema desigual e colonial.
Caminhos possíveis
- Autonomia intelectual
- Formação de pesquisadores indígenas que definam seus próprios temas e metodologias.
- Exemplo: O movimento de Indigenous Data Sovereignty, presente em países como Austrália, Canadá e Nova Zelândia, fortalece o direito das comunidades de controlar seus próprios dados, estabelecendo protocolos éticos sobre como coletar, armazenar e usar informações.
- Formação de pesquisadores indígenas que definam seus próprios temas e metodologias.
- Parcerias horizontais
- Colaborações baseadas em coautoria, cotitularidade e corresponsabilidade registrada.
- Exemplo: No Brasil, o Museu Nacional dos Povos Indígenas, no Rio de Janeiro, vem construindo projetos de pesquisa e curadoria com conselhos indígenas, sendo ele integrado ao plano museológico, que está no chove e não molha, na mesa da gestão presidencial e de seus consultores não indígenas e indigenistas especialistas da Funai em Brasília, mas, idealizado por indígenas em um fórum conduzindo por indígenas e um prestador de serviço acadêmico alinhado e especializado e rompendo com o modelo antigo em que os povos eram apenas “objetos de exposição e cenário etnico”.
- Colaborações baseadas em coautoria, cotitularidade e corresponsabilidade registrada.
- Inovação metodológica
- Uso de narrativas orais, artes, grafismos, rituais e tecnologias digitais indígenas como ferramentas legítimas.
- Exemplo: A Rádio Yandê, primeira web-rádio indígena do Brasil, é também um laboratório vivo de etnomídia indígena, onde a oralidade e a cultura digital se fundem como metodologia de comunicação e pesquisa comunitária, válida ações indígenas academicamente com webgrafia pluri comunicacional multi étnica indigena.
- Uso de narrativas orais, artes, grafismos, rituais e tecnologias digitais indígenas como ferramentas legítimas.
- Educação e acesso
- Políticas que garantam entrada e permanência de jovens indígenas em universidades.
- Exemplo: No Chile, a Universidad de la Frontera implementou programas específicos para estudantes mapuche, com bolsas e tutoria, visando reduzir desigualdades históricas no acesso ao ensino superior.
- Políticas que garantam entrada e permanência de jovens indígenas em universidades.
- Soberania de dados e conhecimento
- O conhecimento produzido deve permanecer sob gestão comunitária.
- Exemplo: Em Gana, projetos de agricultura sustentável com povos locais têm criado bancos de sementes comunitários, controlados pelas aldeias, evitando que corporações monopolizem a biodiversidade.
- O conhecimento produzido deve permanecer sob gestão comunitária.
Nosso olhar
Nosso olhar não é mais o do objeto passivo, mas o do sujeito que questiona, cria e transforma. Nossa determinação é ocupar os espaços de pesquisa com dignidade e consciência, sem abrir mão da nossa identidade, da nossa cultura e da nossa voz.
A ciência que queremos construir não é apenas sobre nós, mas conosco e a partir de nós. Essa é a base para uma pesquisa que seja de fato justa, plural e comprometida com a vida.
“Não aceitaremos mais ser apenas informantes. Somos sujeitos, pesquisadores e autores das nossas próprias histórias.” – | >.:.< |
*O que é Webgrafia PluriEtnoMultiMídia Indígena?
Desconstruindo o termo para facilitar:
Webgrafia → escrita, cartografia e registro digital. Um mapa vivo do que se cria e circula na web.
Pluri → multiplicidade de olhares, linguagens e modos de se comunicar.
Etno → centralidade das identidades culturais, da cosmovisão e da epistemologia de cada povo.
MultiMídia → integração de áudio, vídeo, texto, performance, arte gráfica, oralidade, redes sociais, tecnologia.
Indígena → não apenas como “tema”, mas como autoria, protagonismo e sujeito ativo, autônomo e protagonista dessa criação.
Definição propositiva
Uma Webgrafia PluriEtnoMultiMídia Indígena é uma cartografia digital viva das expressões comunicacionais indígenas, que reúne e conecta múltiplas linguagens (oral, escrita, audiovisual, performática e digital), em diálogo entre diferentes povos e suas identidades culturais.
Mais do que um arquivo ou acervo, ela se constitui como rede de circulação de saberes, memórias e criações indígenas no ambiente online, rompendo com a lógica de homogeneização e afirmando a pluralidade étnica e comunicacional. É ao mesmo tempo hipermídia e território: espaço de resistência, inovação e protagonismo dos povos indígenas na contemporaneidade.
Em termos de uso prático, pode se materializar como estes micros exemplos abaixo:
- Um portal interativo reunindo rádios, podcasts, canais de vídeo, artes gráficas e textos indígenas.
- Uma plataforma-mapa que mostra a produção digital de diferentes povos no Brasil e no mundo.
- Um arquivo colaborativo vivo, onde cada etnia coloca seus registros e narrativas de forma multimídia.
Enfim…
O desafio é imenso, mas não inédito. Resistimos por mais de cinco séculos à colonização e, agora, resistimos também à colonização epistêmica. O futuro da ciência passa pelo reconhecimento de que não há produção legítima de conhecimento sem a presença ativa, crítica e criadora dos povos indígenas.
Não aceitaremos mais ser apenas “informantes”. Somos sujeitos, somos pesquisadores, somos autores das nossas próprias histórias.
Por: Anápuáka M. Tupinambá Hãhãhãe, Redação Rádio Yandê | >.:.< |
@anapuakatupinamba








Uma resposta
Um artigo elucidativo, esclarecedor e norteador para os povos e comunidades indígenas, principalmente para os povos aniquilados da sua identidade original, que não reconhecidas pelo estado.