Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025: Invisíveis para o Estado, a segurança pública ignora os povos indígenas em seus dados e políticas

Create IA and Canva, Rádio Yandê | Anápuàka Tupinambá

Apesar de o Brasil contar com mais de 1,6 milhão de indígenas, pertencentes a mais de 305 povos e falantes de mais de 270 línguas, conforme o Censo do IBGE de 2022, o principal instrumento de formulação e monitoramento das políticas de segurança — o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ignora sistematicamente esses corpos, territórios e vidas. E essa ausência não é técnica: é política.

A lacuna de dados desagregados sobre indígenas no Anuário não apenas compromete o diagnóstico da violência no país, como revela um pacto silencioso de omissão que perpetua o genocídio físico, cultural e institucional dessas populações. O relatório, que é referência para gestores públicos, pesquisadores e veículos de imprensa, detalha os impactos da violência sobre negros, mulheres, jovens e crianças, mas apaga completamente a realidade indígena dos registros.

Dados que não aparecem dizem mais do que os que aparecem

O Anuário de 2025 informa que, no ano anterior, o Brasil registrou 44.127 mortes violentas intencionais, com redução de 5,4%. Também aponta o maior número de estupros da história (cerca de 80 mil casos), a alta letalidade policial (em algumas capitais, mais de 50% das mortes violentas são causadas por policiais), o encarceramento massivo de homens negros, e a violência crescente contra crianças.

No entanto, quando o assunto é povos indígenas, o documento omite dados fundamentais como:

  • Homicídios de indígenas em contexto de disputa fundiária;
  • Estupros de mulheres e meninas indígenas;
  • Violência policial em áreas indígenas urbanas e rurais;
  • Suicídios entre jovens indígenas;
  • Ações de milícias e facções criminosas em Terras Indígenas;
  • Participação de indígenas nas forças de segurança;
  • Protocolos diferenciados de atendimento a comunidades indígenas.

Fontes complementares revelam a realidade ignorada

Felizmente, há organizações que têm preenchido a lacuna deixada pelo Estado. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por exemplo, publica anualmente seu próprio relatório: o “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”.

Segundo o Relatório do CIMI de 2023:

  • Foram registrados 180 assassinatos de indígenas em 2022, sendo os estados do Amazonas e Mato Grosso os mais letais;
  • Houve 1.072 casos de invasões de terras indígenas por grileiros, garimpeiros, madeireiros e empresas do agronegócio;
  • Foram denunciadas 79 ameaças de morte contra lideranças indígenas;
  • O número de suicídios entre indígenas foi de 52, a maioria entre jovens com menos de 25 anos;
  • Mais de 45 casos de violência sexual foram registrados em territórios isolados, muitos envolvendo garimpeiros ilegais.

Esses números, ausentes no Anuário de Segurança Pública, evidenciam a seletividade dos mecanismos estatais de produção de dados, e apontam que a violência contra indígenas tem características distintas e necessita de respostas específicas — o que hoje não existe.

A estrutura racista da produção de dados

A exclusão de indígenas da estatística oficial da segurança pública é parte de uma engrenagem maior: o racismo institucional que permeia o próprio sistema de produção de dados e formulação de políticas públicas.

A ausência da categoria “indígena” nos boletins de ocorrência, nos cadastros da Polícia Civil, nas fichas das Delegacias da Mulher ou nas bases de dados das Secretarias de Segurança torna impossível rastrear violências específicas e sistemáticas, como estupros em contexto de garimpo ilegal, ameaças de pistoleiros, ou mortes causadas por agentes do Estado.

O que é racismo estatístico?

A invisibilização dos indígenas nas bases de dados do Estado é uma das formas mais perigosas de negação de direitos. O que não é nomeado, não é monitorado; o que não é monitorado, não é protegido. Esse apagamento tem consequências concretas: sem dados desagregados por etnia, o Estado não formula políticas específicas para os povos indígenas nas áreas de saúde, segurança, educação, moradia ou cultura. A subnotificação de violências, como assassinatos, violações territoriais e casos de racismo, também é uma consequência direta, pois esses crimes muitas vezes não são reconhecidos como violências étnico-raciais. Além disso, a não inclusão de indígenas em formulários, questionários e sistemas institucionais reforça a falsa ideia de que eles não existem em determinados contextos, especialmente nas cidades, negando sua identidade e existência. Sem dados oficiais, torna-se ainda mais difícil acionar o Estado juridicamente ou politicamente para exigir direitos.

Esse fenômeno é conhecido como racismo estatístico,  quando o racismo se expressa por meio da produção, ausência ou manipulação de dados, de forma a favorecer certos grupos e excluir outros. No caso dos povos indígenas, ele se manifesta por diversos meios: ausência de categorias étnico-raciais adequadas nas pesquisas e formulários, omissão intencional ou negligente nos registros, desconsideração da autodeclaração indígena por parte dos agentes públicos e, sobretudo, pela falta de consulta e participação indígena na construção dessas bases de dados. Trata-se de uma prática silenciosa, porém estrutural, que opera nos bastidores das estatísticas oficiais para manter os povos indígenas fora do radar do Estado.

O racismo estatístico contra os povos indígenas ocorre em diversas instâncias: nos censos, nos boletins epidemiológicos, nas estatísticas de violência, nos relatórios educacionais e até nos sistemas de justiça. Afeta, especialmente, indígenas que vivem fora de terras demarcadas, em contexto urbano, de retomada ou deslocamento forçado, e tem como modus operandi a invisibilização pela ausência de campos específicos, a negação da identidade declarada ou a simples exclusão na hora do registro. Invisibilizar indígenas nas estatísticas é, portanto, negar sua existência institucional, o que implica negar sua humanidade, seus territórios, seus corpos e seus direitos.

O que precisa mudar

Não há como falar em segurança pública democrática e cidadã sem reconhecer a diversidade étnica, cultural e territorial do Brasil. Para que os povos indígenas deixem de ser invisíveis, e alvos, é preciso:

  1. Autodeclaração obrigatória de raça/etnia em todos os registros policiais;
  2. Criação de indicadores específicos sobre violência em contextos indígenas, com participação das próprias comunidades;
  3. Implementação de protocolos de atendimento diferenciados em territórios indígenas, respeitando a Convenção 169 da OIT;
  4. Formação antirracista e intercultural para agentes das forças de segurança;
  5. Incorporação de indígenas nas estruturas do sistema de segurança e justiça, por meio de políticas afirmativas;
  6. Cooperação institucional entre o Ministério da Justiça, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e movimentos indígenas.

Para além dos dados: exigimos vida, dignidade e proteção

Enquanto os gráficos do Anuário seguirem vazios de indígenas, o projeto de segurança pública seguirá incompleto, e cúmplice. Não queremos ser apenas dados de estatísticas, nem corpos indígenas massacrados. Mas isso acontece todos os dias no Brasil.

Somos subnotificados como pessoas indígenas e humanas nos relatórios e estatísticas do Estado. E a invisibilidade nos mata, antes, durante e depois da violência.

O futuro da segurança pública brasileira só será possível com a presença, a escuta e a liderança dos povos indígenas. Porque ninguém está seguro enquanto houver corpos invisíveis sendo assassinados em silêncio.

Redação Rádio Yandê e Anapuaka M. Tupinambá Hãhãhãe

Link do Anuário: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/

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