A voz feminina na história da Comunicação Indígena no Brasil no Dia Internacional da Mulher Indígena

No dia 5 de setembro, celebramos o Dia Internacional da Mulher Indígena, uma data que ecoa desde 1983, em Tiwanaku, na Bolívia, como um chamado para honrar nossas mães, avós e filhas que, em toda Abya Yala, são o coração pulsante da memória ancestral e da continuidade da vida dos povos indígenas. Este não é apenas um marco no calendário, mas uma lembrança profunda de que as mulheres indígenas são o território vivo onde a existência resiste e se renova. Nesta data, sentimos o chamado a reconhecer as vozes femininas que, no Brasil, sustentam a proteção dos territórios e a comunicação indígena, tecendo uma artesania de oralidade, artes, tradições e espiritualidades que atravessam gerações.

Caminhamos com a marca de uma tripla opressão: por sermos mulheres, por sermos indígenas e por sermos pobres. Porém, de cada dor nasceu força. Transformamos a violência em coragem, a marginalização em dignidade e o apagamento em presença. Nossa voz ecoa na defesa da terra, no cuidado das águas, nos rituais que honram o sagrado, nas línguas que resistem através de nossa palavra e nas sementes que guardamos para que a vida jamais se acabe. Neste dia, lembramos Bartolina Sisa, mulher aimará que liderou rebeliões contra a colonização e entregou sua vida pela liberdade. Sua história nos inspira, mas não é única. Milhões de mulheres, da selva às montanhas, do deserto ao altiplano, continuam mantendo vivo o vínculo entre humanidade e natureza. Somos parte da terra, não apenas suas guardiãs.

Por isso, o 5 de setembro não é só memória, é continuidade. Continuamos na linha de frente pela água, pelas florestas, pelos territórios e pelas comunidades. Sem nós, não existiria a raiz cultural que alimenta o presente nem a sabedoria capaz de guiar o futuro. Reconhecer a mulher indígena é compreender que a verdadeira força de um povo está em quem, com coragem silenciosa, sustenta a vida todos os dias.

Desde os anos 1970, quando o Movimento Indígena ganhou força no Brasil, as mulheres indígenas têm desempenhado um papel essencial nesse percurso. Invisibilizadas, elas foram e continuam sendo protagonistas na construção de um pensamento crítico e autônomo sobre comunicação, educação e cultura. A palavra, que para o povo Guarani também significa “alma”, não é apenas um instrumento de diálogo, mas um fenômeno social, cultural, político e ideológico em constante movimento. Ela se corporifica nas danças, nos grafismos, nos cantos e na espiritualidade, utilizando até mesmo a língua do colonizador para denunciar e resistir. E a voz da mulher indígena é essencial na comunicação, pois é ela que, a partir do chão da aldeia, carrega e protege a memória coletiva, o território, a luta por direitos e a afirmação da identidade.

Para celebrar o Dia Internacional da Mulher Indígena, a Rádio Yandê relembra a roda de conversa “Etnomídia Indígena – Uma prosa com vozes históricas da comunicação indígena no Brasil”, realizada em outubro de 2022.

O encontro reuniu mulheres pioneiras que ainda hoje constroem caminhos para uma comunicação cidadã, justa e descolonizadora no Brasil.

Fragmentos históricos e contemporâneos de vozes femininas na Comunicação

Dona Andila Kaingáng, educadora, contadora de histórias e liderança fundamental na retomada da Terra Indígena Serrinha (RS) em 1996, foi uma das primeiras mulheres indígenas a escrever em boletins indigenistas. Na década de 1970, redigiu uma carta ao presidente Ernesto Geisel, publicada no Boletim do CIMI, tornando-se uma voz feminina de resistência. Hoje, dedica-se à escrita de seu próprio livro, reafirmando a importância de preservar e fortalecer a língua Kaingáng, ameaçada de desaparecer.

Então, em 1975, culminou que a Funai não respondia mais pelos arrendamentos. Acabou o arrendamento, né? Mas, os arrendatários ficaram dentro da nossa reserva. Ficaram lá plantando! Não pagavam mais, mas ficaram lá dentro, né? Ficou uma situação pior ainda! E a Funai não se sentia responsável por retirar esse pessoal de cima das nossas terras, né? Foi na época que, então, em 1975, eu escrevo na época do governo militar, né? Eu escrevo uma carta para o presidente da República assim, como um pedido de socorro. Porque, vê que naquela época, em 1970 e 1975, não tinha Constituição Federal que garantia nada pra nós. Nem as nossas terras eram garantias, né? Então, foi realmente assim um grito de socorro aquela carta, né? – conta Dona Andila.

Na roda de prosa, também escutamos os causos de Eliane Potiguara, escritora, ativista e pioneira na literatura indígena. Ainda criança, escrevia cartas para a comunidade Potiguara a pedido de sua avó analfabeta. Fundadora da Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas, criou o primeiro informativo produzido por mulheres indígenas e foi uma das primeiras a utilizar a internet, nos anos 1990, como ferramenta de comunicação. Para ela, a escrita sempre foi um instrumento de denúncia e de cura coletiva.

– O GRUMIN nasceu de um grupo de mulheres que tinha problemas sérios, porque havia muita violência doméstica, havia uma situação do alcoolismo muito grande, havia arrendamentos de terra havia várias coisas irregulares na comunidade. Foi quando o cacique potiguara João Batista Faustino, que hoje se tivesse vivo já estava com quase 100 anos, ele pediu para que a gente fizesse um encontro. Foi quando a gente realizou o primeiro encontro Potiguara de luta e resistência, né? A gente fez cartaz, a gente divulgou no Brasil inteiro. Aí, nesse evento eu senti necessidade de escrever uma cartilha de conscientização política porque estava vendo uma relação de domínio do poder, né, o opressor e o oprimido, mesmo dentro das comunidades. E isso acontece ainda hoje, isso é uma prática capitalista imperialista, né, mesmo em pequenas escalas. É o poder do maior sobre o menor – relembra Eliane.

Embora não indígena, Angela Pappiani é uma colaboradora incansável na história da comunicação indígena. Na década de 1980, participou da criação do “Programa de Índio”, veiculado pela Rádio USP a partir de 1985, idealizado por Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Biraci Yawanawá. O programa marcou uma nova fase ao dialogar diretamente com a sociedade urbana em plena redemocratização. Foram mais de 200 edições produzidas, com Angela gravando fitas cassetes para distribuir pelas aldeias, preservando depoimentos de lideranças e registros históricos fundamentais. Sua dedicação inspirou, anos mais tarde, a criação da Rádio Yandê.

Conseguimos um gravador portátil, que quando começou não tinha absolutamente nada! E, aí, com um gravadorzinho, já conquistamos mais independência. Porque aí, quando Aílton, Álvaro ou Biraci Brasil, ou Megaron [Txucarramãe] ou sei lá, tantas pessoas da época viajavam, mandavam material para gente. E a gente começou a receber muita fita cassete das aldeias com material. Mais perto da Constituinte, nós fizemos uma série de programas informativos para as aldeias. E aí, eram 800, 900 fitas k7 copiadas e a gente distribuía isso por uma rede maluca que tinha de tudo: tinha as ONGs, que trabalhavam em terra indígena, alguns funcionários de Funai que ajudavam, algumas pessoas do Cimi ajudavam, alguns estudiosos pesquisadores. Mas, a gente construiu uma rede incrível de distribuição, a gente chegou a distribuir 1.200 fitas e isso a cada dois meses! – recorda Angela, que foi produtora do Programa de Índio.

Elaíze Farias, jornalista e cofundadora da Agência Amazônia Real, trouxe à roda de prosa a riqueza de sua trajetória, repleta de reportagens investigativas sobre direitos territoriais, impactos ambientais e a realidade dos povos da Amazônia. Embora não defina o seu fazer comunicacional como etnomidiático, a sua prática jornalística é marcada pela escuta sensível e pelo compromisso ético com as vozes indígenas, questionando a forma como a mídia tradicional retrata o cidadão indígena, procurando priorizar a escuta da mulher indígena dentre as suas fontes.

Eu gosto de chamar de jornalismo, ou então jornalismo feito por indígenas, comunicação feita por indígenas. É isso. Não tem que rotular. Até porque existe várias formas de fazer o que se chama de “etno”. Hoje, então, com essa turma grande de comunicadores jovens nas plataformas que estão sempre criando, se apropriando, reinventando, utilizando as ferramentas da mídia, da internet. Eu fico muito impressionada como cresceu, sobretudo nos últimos anos! O básico do jornalismo é chegar no lugar, ouvir, tentar compreender pelo menos, né? Ter paciência e não ultrapassar os limites, não chegar no tempo, achando que “Eu já ouvi aquela liderança e eu vou embora”. Então, tem que ter paciência! E não é porque é algo exótico, excêntrico. Não! É uma outra cultura! Você tem que entender que é outra cultura, outra realidade. Tem que compreender, às vezes, diferentes costumes. Isso, inclusive, está alegado pela Constituição, né? – explica Elaíze.

Em 2004, a cineasta e documentarista Olinda Muniz Wanderley Tupinambá (Yawar) iniciava a produção de conteúdo para o portal Índios Online. Sua obra transita entre documentário e arte, unindo espiritualidade, denúncia social e defesa ambiental. Em filmes como Kaapora e Ibirapema (2022), ela retrata os impactos da modernidade e a resistência das comunidades indígenas.

Eu acho que fazer comunicação hoje é, enquanto indígena, escolher a batalha. Você vai escolher falar sobre educação ambiental ou se você vai falar nessa questão da proteção à natureza. Sempre é uma coisa que acaba gerando muitos conflitos, tanto interno como externo, né? O externo, porque, normalmente, essas pessoas estão de olho em coisas que estão dentro dos territórios. E, ao, mesmo tempo, dentro. Tem hora que cansa mesmo, essa coisa de ativista, sabe? Queria ter uma vida normal, queria poder fazer outras coisas. Eu acho que é o que dá, né? É o que a gente é! Nasceu indígena e parece que nascer indígena nesse país é luta constante, né? Mas, sinceramente: me cansa essa coisa de achar que a gente tem que ser o guardião [da floresta]. Porque assim: a gente não vai salvar nada! Salvar Amazônia vai salvar o planeta inteiro, sabe? E eu acho que é preciso a gente acordar e ter esse esclarecimento de que tudo é importante! Eu moro na Mata Atlântica e aqui tem uma biodiversidade enorme que sendo destruída também, que eu não vejo isso sendo pautado, sabe? Não vejo o próprio movimento falar sobre isso. E isso, também é mais uma forma de invisibilização – afirma Olinda.

Um legado feminino coletivo

Ao reunir essas vozes, a roda de prosa resgatou histórias que atravessam gerações. Se nas décadas de 1970 e 1980 mulheres como Andila e Eliane abriram caminhos em boletins e informativos, hoje comunicadoras como Elaíze e Olinda ampliam visões para uma comunicação multimidiática em novas plataformas, do jornalismo investigativo ao audiovisual. Mais do que registrar memórias, essas mulheres demonstram que a comunicação indígena é um campo de resistência, criatividade e afirmação de direitos.

Vozes femininas nos mostram que não basta falar, é preciso lutar para que mais mulheres sejam ouvidas, reconhecidas e respeitadas. Nas cosmovisões Tupi-Guarani, escutar é mais do que ouvir: é um exercício de acolhimento, reflexão e ação. Como lembra a escritora Graça Graúna, comunicar é também transformar: afirmar liberdade, denunciar injustiças e reescrever a história a partir das próprias narrativas. Assim, o 5 de setembro é um convite para celebrar a força das mulheres indígenas, que, com coragem silenciosa, continuam a sustentar a vida, a memória e a luta por um futuro em que suas vozes ecoem ainda mais alto.

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