Tecnologia sem Protocolo é Colonização Digital: o caso do “Duolingo indígena” como exemplo de risco aos povos originários

“Sem protocolos comunitários indígenas, projetos como o ‘Duolingo indígena’ e outros se tornam novas ferramentas de apagamento cultural e dominação digital.”

Por Anápuàka Tupinambá Hãhãhãe

Os não indígenas e nós pessoas Indígenas vivemos um tempo em que a inteligência artificial (IA) é celebrada como solução para quase tudo: saúde, educação, mercado financeiro, preservação cultural, agricultura, segurança pública, defesa e vigilância, transporte e logística, comércio eletrônico, marketing digital, atendimento ao cliente, recursos humanos, meio ambiente, energia, cidades inteligentes, indústria 4.0, arte digital, produção musical, jornalismo automatizado, reconhecimento facial, análise preditiva, mineração de dados, tradução automática, criação de conteúdo, games e entretenimento, robótica, acessibilidade, análise jurídica, combate a fraudes, arqueologia digital, climatologia, mobilidade urbana, design, arquitetura, curadoria de museus, automação doméstica, conservação da biodiversidade, esportes e performance atlética, educação personalizada, plataformas de streaming, diagnóstico médico por imagem, assistentes virtuais, automação de processos, gestão de riscos, fintechs e bancos digitais, sistemas de recomendação, moderação de conteúdo online, agricultura de precisão, telecomunicações, diagnóstico precoce de doenças, drones autônomos, veículos autônomos, metaverso, blockchain com IA, simulação de desastres naturais, apoio psicoterapêutico digital, moda e estilo preditivo, engenharia, exploração espacial, treinamento de militares, planejamento urbano, etnomatemática, classificação de documentos, reconhecimento de voz, redes sociais inteligentes, análise de sentimentos, sistemas de voto eletrônico, processos de recrutamento, personalização de produtos, monitoramento de ecossistemas, direitos digitais, treinamento adaptativo, detecção de deepfakes, economia criativa, ensino de idiomas, marketing político, avaliação de desempenho escolar, políticas públicas baseadas em dados, conservação de línguas ameaçadas, modelagem 3D, engenharia genética, identificação de padrões culturais, biblioteconomia digital, modelagem de cenários climáticos futuros., Ufa faltou algo? Projetos são anunciados diariamente prometendo inclusão, inovação e progresso. Entre esses,  temos um exemplo recente e aparece o aplicativo BILingo, apelidado de “Duolingo indígena” pela mídia dos não indígenas. A promessa é extremamente sedutora, até eu tive uns faniquitos: ensinar línguas indígenas com tecnologia de ponta, de forma gratuita, acessível e lúdica. Mas é exatamente nessas propostas que precisamos redobrar nosso olhar crítico e trazer à tona os fundamentos da SOBERANIA INDÍGENA sobre os dados, os saberes e o futuro digital dos nossos povos, de nossas nações.

Tecnologias desenvolvidas sem seguir protocolos comunitários indígenas de ética, dados e inteligência artificial correm o risco de se tornarem verdadeiras armas de silenciamento, controle e apagamento cultural, substituindo o diálogo pelo domínio, a escuta pela extração e a memória viva pelo algoritmo colonizador e racista. A colonização muda de forma: sai a cruz e a espada, entra o app e o algoritmo com racismos estrutural de 525 anos, e em continuidade. Mas o impacto pode ser igualmente devastador.

Mas o que está acontecendo?

Vamos dar um exemplo real, o BILingo está sendo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Tübingen, na Alemanha, com apoio de órgãos públicos como a Secretaria de Educação do Mato Grosso e missões religiosas. A proposta central é ensinar línguas indígenas como o Bororo e o Makurapi por meio de um aplicativo que utiliza inteligência artificial não indígena, tarefas lúdicas e recursos de voz e texto. A intenção parece boa. Mas uma análise profunda mostra que a estrutura do projeto se apoia em pilares extremamente frágeis do ponto de vista dos direitos indígenas.

Para alimentar a IA, são utilizados dados sensíveis: gravações de anciãos, registros de rituais, arquivos culturais, histórias sagradas. Parte dessas fontes vem até de traduções bíblicas feitas por missionários, muitas vezes com distorções do significado original. Quem estrutura o banco de dados? Quem escreve os algoritmos? Quem define o que será ensinado e como?

Não são as comunidades. Não são os anciãos. Não são os professores indígenas. É um projeto feito para os indígenas, mas sem a liderança dos indígenas.

Qual é o problema “mermu”?

O problema não é a tecnologia. O problema é a lógica por trás dela. Quando uma comunidade indígena não tem poder de proteção de fato e decisório sobre o uso dos seus dados, da sua língua, da sua cultura, isso configura uma nova forma de colonialismo e genocídio algorítmico. Um colonialismo digital, baseado na extração de saberes para alimentar sistemas de inteligência artificial que não respeitam os tempos, os modos e os protocolos dos povos originários.

Neste caso específico:

  • O projeto não nasceu dentro das comunidades, mas nas universidades.
  • Não há provas de que foi feito um CLPI (Consentimento Livre, Prévio e Informado) legítimo, com assembleias, escuta, tempo e possibilidade de recusa.
  • Não há aplicação de um Protocolo Comunitário Indígena de Ética, Dados e IA.
  • Os dados são armazenados e tratados fora das comunidades.
  • A propriedade intelectual da ferramenta e dos dados parece não ser compartilhada com os povos envolvidos.

Mesmo com participação simbólica de jovens ou professores locais, a estrutura continua sendo controlada por instituições acadêmicas, empresas de tecnologia e órgãos indigenistas não indígenas. Isso não é protagonismo. Isso é uso instrumental do indígena para validar uma narrativa de inovação.

Oxê, e este tal “Genocídio Algorítmico Étnico-Indígena” que foi citado: é um novo apagamento em nome da tecnologia?

Voltando a dizer que o problema não é a tecnologia em si. O problema é quem constrói e determina a lógica por trás dela. Quando uma comunidade indígena não tem poder real de 100% de decisão e proteção sobre o uso de seus dados, suas imagens, suas palavras e seus saberes, está em curso uma nova forma de colonialismo: o genocídio algorítmico étnico-indígena.

Esse tipo de genocídio não ocorre com armas nem com violências visíveis. Ele acontece com códigos, algoritmos e sistemas de inteligência artificial que “aprendem” com bancos de dados que, na maioria das vezes, ignoram completamente os povos originários ou, pior, extraem seus conhecimentos sem consentimento. São sistemas que não reconhecem nossas línguas, não entendem nossos rostos, não respeitam nossos cantos nem os nossos tempos. Eles nos tratam como se fôssemos invisíveis, ou como se fôssemos apenas recursos culturais a serem explorados.

Do ponto de vista técnico, o genocídio algorítmico se manifesta quando as estruturas de IA e tecnologia digital reproduzem ou reforçam o apagamento sistemático de identidades, culturas e modos de vida. Isso acontece por meio da ausência de dados indígenas nos modelos de IA, da utilização indevida de imagens, vozes e símbolos culturais, e da substituição da escuta pela extração.

Agora imagine um pai ou mãe explicar isso pra uma criança indígena sobre a IA e seu futuro atrelado :

Uma conversa com o futuro:

O que as máquinas indígenas precisam aprender com a gente?

“Meu filho, senta aqui do meu lado, que eu quero te contar uma coisa que está acontecendo no mundo…”

Hoje em dia tem umas máquinas que parecem até que pensam. Tem nome bonito: chamam de Inteligência Artificial. Elas moram dentro do celular, do computador, da televisão. E parecem saber tudo. Sabem o caminho até a escola, sabem a previsão do tempo, sabem escrever textos, até responder perguntas.

Mas vou te contar um segredo: essas máquinas só sabem o que alguém ensinou pra elas. Elas aprendem com o que a gente coloca lá dentro. É como se fossem crianças muito curiosas, que escutam tudo, mas só escutam o que os brancos estão falando. Só escutam o português, o inglês… Mas quase nunca escutam o Nheengatu, o Tupinambá, o Guarani, o Tikuna, o Kambeba, nem as histórias da nossa aldeia, nem o canto do pajé, nem os rezos da avó.

E aí, o que acontece?

Essas máquinas começam a pensar que só existe o que elas ouviram. E vão esquecendo da gente. Ou pior: contam nossa história de um jeito errado, misturado, mentiroso. Contam como se a gente fosse um povo do passado, uma fantasia, um desenho animado. E isso é perigoso, meu filho. Porque se a máquina não aprende com a gente, ela pode ajudar a apagar a gente. Sem guerra, sem armas, mas com silêncio.

Por isso, a gente precisa ensinar as máquinas do nosso jeito. Ensinar nossa língua, nosso canto, nossa memória. Ensinar que o tempo não é só o do relógio, que saber não é só o que está no livro. Que existe inteligência que vem da floresta, do rio, do vento, da rede, da fogueira.

Você, meus filhos e filhas, estão  crescendo num tempo onde a tecnologia vai estar em tudo, a tecnologia das coisas.  Que os não indígenas também chamam como Internet das Coisas (IoT), Mas eu te peço meus filhos: não esquece de ensinar pra ela quem somos. Porque se a gente não ensina, ela aprende sozinha, e esquece a gente. E a gente não veio até aqui pra ser esquecido.”

É disso que estamos falando: de uma tecnologia que, se não for orientada por protocolos comunitários de ética e cultura, pode virar uma nova forma de genocídio , um genocídio silencioso, digital, mas não menos destrutivo.

Portanto, é urgente afirmar: sem os POVOS INDÍGENAS  na GOVERNANÇA dos dados e das tecnologias, qualquer inovação corre o risco de repetir velhas opressões com uma nova linguagem. Proteger as culturas indígenas na era digital não é apenas uma questão de diversidade ou inclusão, é uma questão de sobrevivência, dignidade e justiça histórica.

“Toda e qualquer iniciativa relacionada a IA ou dados deverá obter Consentimento Livre, Prévio e Informado, respeitando os rituais, o tempo e os canais legítimos da comunidade.”

Por que os protocolos indígenas importam?

Primeiramente, vidas indígenas importam até digitalmente para começar. Em resposta a esse tipo de risco, com as nossas comunidades indígenas vêm pensado e criando Protocolos Comunitários de Ética, Dados e Inteligência Artificial, como o que elaboramos recentemente com base em documentos como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), a Convenção 169 da OIT, a Constituição Brasileira e princípios internacionais como CARE e OCAP.

Esses protocolos estabelecem que:

  • Toda e qualquer tecnologia que envolva povos indígenas deve respeitar o consentimento coletivo.
  • Os dados indígenas (linguísticos, territoriais, espirituais) são propriedade coletiva e não podem ser comercializados, copiados ou usados sem autorização.
  • A tecnologia deve ter finalidade cultural, educacional e comunitária, e nunca substitutiva dos processos tradicionais.
  • O uso de IA deve respeitar a cosmogonia e o tempo ritual das comunidades, não podendo padronizar ou simplificar saberes sagrados.

Sem esses princípios, qualquer projeto se transforma em uma forma moderna de epistemicídio assistido por máquina.

Os riscos em três tempos

No curto prazo:

  • A comunidade entrega conteúdo sagrado sem saber para onde vai ou como será usado.
  • O app ganha visibilidade, vira matéria de revista, vídeo institucional, prêmio acadêmico.
  • A juventude começa a confiar mais no aplicativo do que na oralidade dos anciãos.

No médio prazo:

  • A língua ensinada pelo app vira uma versão “higienizada”, sem ritmo, sem canto, sem espiritualidade.
  • A relação com os territórios, os rituais e as narrativas se enfraquece.
  • Novos apps ou serviços surgem usando os dados originais sem contrapartida ou controle indígena.

No longo prazo:

  • O idioma pode ser licenciado, patenteado ou usado por grandes empresas.
  • O app se torna modelo para outras línguas sem governança indígena.
  • A soberania digital e linguística da comunidade desaparece, mesmo que a ferramenta siga existindo.

Destacar os riscos de copyright e blockchain: Além disso, cresce o risco de que línguas indígenas sejam tokenizadas por meio de blockchain e vinculadas a produtos de IA que simulam “experiências culturais autênticas”. Já existem casos no exterior em que empresas estão criando NFTs, coleções digitais e produtos educativos baseados em línguas e rituais indígenas, muitas vezes sem qualquer envolvimento das comunidades. Essas linguagens são transformadas em ativos digitais para venda, leilão ou especulação, configurando uma nova camada de extrativismo digital disfarçado de inovação tecnológica. Essa prática ameaça transformar a diversidade cultural indígena em mercadoria controlada por terceiros, violando direitos coletivos, espirituais e territoriais.

Não é exagero: a IA pode acelerar o apagamento de uma cultura, ao mesmo tempo em que finge estar preservando.

Indigenismo não é protagonismo

A lógica indigenista parte da ideia de que “o branco sabe o que é melhor para o indígena”. Mesmo quando bem-intencionada, essa lógica mantém o poder nas mãos de quem sempre o teve, exemplo está aí a Fundação Nacional dos Povos Indigenas (Funai) tem até um presidente indígena, mas que manda são os mesmos não indígenas nos bastidores do indigenismo público e privado falando no ouvido e dando as cartas, então fica tudo como sempre esteve apenas com um cortina nova na casa. O protagonismo e autonomia indígena é o contrário: significa transferência real de decisão, de orçamento, de autoria, de propriedade tecnológica.

Participar não basta. Validar não é liderar. Ser consultado não é ser soberano.

Enquanto os protocolos, as assembleias e os conselhos comunitários não forem centro do processo, tudo será apenas uma modernização do velho colonialismo, agora com fundo verde, linguagem digital, fotos com sorriso amarelo de quem realmente manda aqui e discursos de inclusão.

O que se é exigido ou exigimos?

Para que tecnologias voltadas às línguas indígenas sirvam de fato aos povos originários, é preciso:

  • Aplicar Protocolos Comunitários com base jurídica e validação prática.
  • Garantir que o CLPI seja feito em linguagem acessível, com tempo legítimo e poder de recusa.
  • Criar e fortalecer comitês de soberania digital indígena.
  • Apoiar financeiramente apps criados por indígenas, com controle completo sobre dados, servidores e IA.
  • Incluir cláusulas de uso ético em contratos com universidades e empresas.
  • Desenvolver legislações específicas para proteção de dados culturais e espirituais dos povos originários.
  • Reconhecer e financiar o trabalho de anciãos, pajés e mestres da oralidade como educadores e guardiões da língua, e não apenas como fonte de dados.
  • Reconhecer o trabalho de indígenas, pensadores e pesquisadores  e dêem os créditos até o uso deste texto.

Além dessas medidas, propomos ações concretas para reverter a lógica atual de dominação digital sobre os povos indígenas: criar um Observatório Indígena de Tecnologia e Inteligência Artificial, gerido por lideranças e especialistas indígenas, com o papel de monitorar, denunciar e propor normas específicas sobre o uso de IA nos territórios e fora deles. Também é necessário estabelecer uma moratória imediata para todos os aplicativos e projetos tecnológicos não indígenas que utilizem dados de povos originários sem regulamentação específica e sem o devido protocolo comunitário reconhecido. Essa suspensão deve permanecer até que haja legislação nacional e internacional que assegure proteção, soberania e justiça digital para os nossos povos.

Queremos códigos com alma, meus parentes e “parênteses”!

O futuro digital dos povos indígenas precisa ser construído com autonomia, protagonismos, espiritualidade com memoriâncias indígenas e reciprocidade.

Não queremos uma tecnologia que nos inclua como exceção. Queremos uma tecnologia que nasça a partir dos nossos modos de existir, ensinar, ser, narrar e viver.

Sem protocolo, qualquer IA é extrativismo. Sem soberania, qualquer app é colonização. Sem escuta, qualquer linguagem é ruído.

A língua não é só palavra. É território, corpo, espírito, memória e futuro.

Tecnologia sem protocolo é colonização digital.

Anápuàka Tupinambá Hãhãhãe é comunicador, jornalista, empreendedor indígena, fundador da Rádio Yandê e idealizador do conceito de Etnomídia Indígena. Atua na construção de políticas públicas indígenas, soberania digital e tecnológica para os povos originários do Brasil.

Uma resposta

  1. Seu texto foi exatamente o que pensei quando li sobre esse “BILingo” pela primeira vez. A chance de ser mais uma arma de homogeneização e obliteração sócio-histórica, sobretudo porque criado e incentivado por ninhos colonialistas, é enorme.

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