Após o primeiro mês de governo interino no Brasil, o panorama da violência e preconceito contra os povos indígenas tem se agravado: no estado do Mato Grosso do Sul nos últimos dias tem acontecido ataques coordenados nas terras indígenas Pindoroky, Itaguá, Teyijusu, Kunumi Yvu, Nhandeva Pindo Pty, Guapoy, Joha, Javoraikue e Mbytere.
O conflito pela terra teve inicio a partir do momento em que o estado brasileiro vendeu as terras da união, já ocupadas tradicionalmente por indígenas, à colonos fazendeiros no projeto de expansão da fronteira agrícola na região, provocando a expulsão dos povos originários de suas terras e deixando-os à própria sorte às beiras das estradas ou concentrados no Reformatório Krenak, lembrados como espaços de proibição das práticas tradicionais, das línguas, lugares de trabalho forçado e de assassinato de diversas lideranças, algo semelhante a campos de concentração indígenas desde os anos 50 até o fim da ditadura militar no brasil.
Durante o período de redemocratização do Brasil, os povos Guarani, Kaiowa e Terena decidiram pelo processo de retomada das terras ancestrais como único meio de sobrevivência de seus povos, reocupando as beiras das fazendas ali instaladas há poucas décadas e enfrentando preconceito, violência, criminalização e terror quotidianos. O Mato Grosso do Sul, batizado um dia por suas florestas exuberantes, hoje é um deserto de cana-de-açúcar, pasto e soja, lavouras de grandes produtores rurais e poucos agricultores familiares: a maioria da população do campo trabalha a serviço desse modelo de produção muitas vezes em condição de trabalho escravo.
Os grandes proprietários conduzem a economia e a política do estado de acordo com os próprios interesses, assim desenvolveram ao longo dos anos um sistema de extermínio dos povos indígenas protagonizado por milícias compostas por pistoleiros, membros da polícia militar e do DOF (Departamento de Operações de Fronteira) que atendem diretamente às ordens do governo do estado além de contar em suas fileiras inúmeros casos de corrupção. Entre os pistoleiros sabe-se de muitos ex-presidiários ou assassinos convictos fugitivos da lei, que circulam livremente pela região deixando os acampamentos indígenas num estado de alerta e terror constante.
Como acontecem os ataques:
Os pistoleiros costumam transitar constantemente de carro e moto pelas estradas às beiras das retomadas, os fazendeiros costumam andar acompanhados por segurança privada e muito frequentemente escoltados por carros da PM e do DOF. O grande número de atropelamentos nessas estradas é reconhecido pelos habitantes da região como uma estratégia para alegar acidentes ou homicídios dolosos que não entrem nas estatísticas de execução de indígenas: muitas vezes atropelam e jogam álcool nas bocas das vítimas para alegar que estariam alcoolizadas no momento do “acidente” sem prestar socorro ou notificar as autoridades.
Os plantios de cana-de-açúcar em volta das retomadas são incendiados com o intuito de dificultar as rotas de fuga em meio a um tiroteio iminente: a queimada da cana faz parte do ciclo do plantio, mas raramente com a frequência que acontece em volta das retomadas indígenas. Os incêndios nas lavouras intoxicam o ar e dificultam a visão panorâmica em volta da retomada, facilitando a aproximação dos pistoleiros. Em várias ocasiões aconteceu nesse contexto o incêndio criminoso de casas de reza e casas improvisadas com palha, lona e plástico, levando a óbito anciões e crianças queimados vivos dentro de suas próprias moradias.
Nas fazendas é possível encontrar verdadeiros arsenais de armamentos comprados do outro lado da fronteira, e geralmente os fazendeiros e funcionários possuem porte de arma sem justificar seu uso. Durante as noites é necessário fazer vigília constante para notar se algum carro está rondando o acampamento com as luzes desligadas, pode ser um sinal de ataque iminente. Os tiros começam no meio da noite, podem avançar ou não, deixando a população indígena sitiada e em pânico. Os cartuchos das balas podem ser encontrados espalhados ao redor do acampamento com facilidade, mas raramente se dá andamento à investigação dos autores dos disparos a nível municipal ou estadual: apenas na esfera federal existe alguma resposta às denuncias contra esses crimes.
Durante os ataques a população majoritariamente composta por mulheres e crianças corre para tentar encontrar algum lugar seguro mesmo que seja no meio das plantações ao relento no frio do inverno sul-mato-grossense.
As práticas aqui descritas são apenas algumas das mais comuns no momento do tiroteio; a elas soma-se o envenenamento por pulverização de agrotóxico via aérea, a contaminação das águas potáveis e do solo, os ataques isolados a lideranças indígenas e os estupros seguidos de homicídio ou suicídio que também estão entre as principais causas de óbito indígena no estado.
Omissão do estado frente ao genocídio indígena:
Na portaria nº611 de 10 de junho de 2016, o Ministro da Justiça Alexandre Moraes colocou, no Art. 1º - “Ficam suspensas, por noventa dias, as delegações de competência relativas à celebração de contratos, convênios e instrumentos congêneres, a nomeação de servidores, a autorização de repasses de quaisquer valores não contratados, a realização de despesas com diárias e passagens, e a realização de eventos, no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania (...)”
Organizações da sociedade civil informaram à PFDC que a medida gera impactos diretos no funcionamento dos cinco conselhos de direitos vinculados administrativamente à Secretaria Especial de Direitos Humanos, incorporada ao Ministério da Justiça e Cidadania: o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência (Conade), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o Conselho dos Direitos da Pessoa Idosa (CDI) e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT). Também estariam sob ameaça a continuidade de políticas e programas voltados à proteção de defensores de direitos humanos, de vítimas e testemunhas ameaçadas, de crianças e adolescentes, entre outros segmentos socialmente vulnerabilizados.
A SDH é um dos órgãos que sofreu com os cortes e reorganização administrativa do governo Temer, e vem passando igualmente pela reformulação dos cargos com a exoneração dos funcionários em cargos de direção; a pasta foi direcionada da presidência da república para o ministério da Justiça, que nomeou Flávia Piovesan para o cargo. A nomeação da secretária consta no Diário Oficial da União sem que, no entanto, após algumas semanas, tenha acontecido a cerimônia de posse ou a mesma tenha se apresentado para trabalhar em Brasília. A mesma portaria ministerial paralisou o orçamento da Fundação Nacional do Índio - FUNAI - que, em 2016, seguindo o planejamento anual, deverá atuar com o corte de 26% em seu orçamento e a capacidade de apenas 36% dos servidores.
O sucateamento da instituição é oportuno para um governo omisso e conduzido abertamente pelos interesses do agronegócio, cujos parlamentares da frente ruralista encabeçam atualmente a CPI da FUNAI e do INCRA no intuito de questionar os métodos e atividades da fundação, criminalizando servidores do órgão e lideranças indígenas em conflitos por terra. A CPI da FUNAI e do INCRA dá continuidade aos debates instaurados na Proposta de Emenda Parlamentar 215, defendida pela mesma bancada, que se articula pela revisão e impedimento da demarcação das terras indígenas no país e almeja sua abertura para o avanço da fronteira agrícola, da mineração e da exploração de recursos naturais.